"Rejeita a sede dos livros". CP#55
Nossa relação com a leitura e o impacto disso em nossa vida.
Nesta edição:
I. Leitura: regras, máximas e o lobby.
II. Menos leitura, mais jardinagem.
III. Ler mais para ter menos certezas.
IV. Conecta Links.
V. Conecta Livros.
A quantidade de respostas à última edição me surpreendeu e que bom ter conseguido espalhar um pouco da palavra de Montaigne e fazer aflorar sua curiosidade sobre o ensaísta. Nessa edição, compartilho "regras", máximas e reflexões sobre leitura que trouxe pra minha relação com os livros inspirado ainda no filósofo e nas minhas últimas leituras.
I. Leitura: regras, máximas e o lobby.
Sempre que me vejo sem saber o que trazer pra cá, recorro as minhas anotações ou pego uns livros pra folhear e buscar referências e inspiração.
Dessa vez me peguei analisando a quantidade de passagens que destaquei em alguns livros e que eu não fazia a mínima ideia do porque aquilo tinha chamado minha atenção. Ou até o inverso. Uma rápida varredura na página que mostrava um trecho não destacado que saltava aos olhos.
“Não podemos nos banhar duas vezes no mesmo rio porque as águas se renovam a cada instante”.
Gosto dessa passagem do Heráclito aplicada aos livros e que resume bem a questão. Segundo o filósofo, nem o homem nem as águas do rio são mais as mesmas quando se volta a mergulhar. A lógica pode ser aplicada à leitura: não se lê duas vezes o mesmo livro. Em essência, o livro é o mesmo. Mas o leitor não.
A máxima do Nassim Taleb sobre a releitura de livros vale o destaque pelo mesmo motivo: “Um bom livro melhora na segunda leitura. Um ótimo livro na terceira. Qualquer livro que não vale a pena reler não vale a pena ser lido”.
Eu adoro colecionar essas máximas e aforismos sobre leitura. O que é diferente de regras. E observo muita gente “cagando regra” sobre o assunto (também já tive minha fase, inclusive). E nada contra regras também. Sigo tendo as minhas. O problema é quando elas acabam servindo apenas para sugar completamente o prazer da leitura.
E aqui vale a pena recorrer novamente a Montaigne, que contou de modo insuperável como lia e o que gostava de ler, e tomar mais uma vez as palavras do Stefan Zweig emprestadas: “Estamos prontos para endossar cem por cento os juízos de Montaigne sobre livros.”
O que particularmente me inspira na relação de Montaigne com os livros é que o filósofo deixava claro que exigia deles que o estimulassem e que apenas por estímulo o instruíssem. Queria ler e aprender, mas na medida pelo tempo e no momento em que isso lhe dava prazer.
Hoje, e observo isso em casa com minha esposa, aspirantes a leitores sofrem com ansiedades e sentimentos de inadequação graças a tantas “regras de leitura”.
Falando por mim, se existe uma regra básica nessa matéria é a que aprendi lendo sobre a relação de Montaigne com os livros: Ler, acima de tudo, o que dá prazer.
Sem esquecer que nunca um livro é de todo igualmente atraente ou interessante , e que tal como a vida cotidiana, comporta partes enfadonhas, artificiais, frias e complicadas, se um livro me parece tedioso, ou até mesmo muito difícil, procuro outro.
Isso vale especialmente pra quem procura consolidar o hábito. E sem querer cagar regrinha mas já cagando: Se você não quer ler, se não tem prazer, é melhor fazer outra coisa e parar de se torturar.
E não me entenda errado. Quem me acompanha por aqui há mais tempo sabe do meu respeito pelos livros e pelo hábito da leitura. Hábito que acho muito importante e até subestimado. Mas isso não esconde o fato de que, há sim, muita romantização sobre livros.
É natural que, como todo hábito, coloquemos metas e algumas regras nessa atividade, mas a leitura também pode ser encarada como um outro passatempo qualquer.
Mais do que regras, gosto de pensar e manter em mente máximas e aforismos que me ajudem a aproveitar e curtir mais esse passatempo.
II. Menos leitura, mais jardinagem
Ler, como qualquer outro hábito é também sobre (des)escolhas. A cada vez que se escolhe ler, há a escolha de deixar de se fazer alguma outra coisa. Cada escolha por um livro implica deixar tantos outros para trás. E acredite, tem muito livro ruim e que não vale a pena ser lido. Me arrisco dizer que a maioria deles.
“Rejeita a sede dos livros”, disse Marco Aurélio, “para que não morras murmurando, mas com serenidade.”
Nossa capacidade de ler é restrita. “Descontai da vida humana as ocupações, os aborrecimentos, os acidentes, e pouco tempo fica para leitura”, diz Jean Guitton em “O Trabalho Intelectual”, que segue:
“Quem lesse dez livros por ano, e que o fizesse ao longo de meio século, nunca ficaria conhecendo senão uma parte mínima do que contém a mais pobre biblioteca de sua cidade. E contar dez livros bem lidos num ano não será talvez muito? E quem sabe se esse leitor regular, ao fim de trinta anos, não experimentaria ainda mais prazer em reler os livros que lhe tinham agradado na sua juventude do que em abordar outros novos?”
É no mínimo curioso que mesmo colecionando essas máximas sobre releituras e com aquela regra básica, me pareça sempre mais vantajoso buscar algo novo pra ler.
Ler mais, porém, muitas vezes não significa ler o máximo de livros possíveis. Talvez não foi o que quis dizer o Marco Aurélio, mas acredito que rejeitar a sede dos livros é não cair nessa onda de romantização da leitura. É não tratar os livros como objetos de fetiche e prezar mais pela qualidade do que a quantidade.
“Os escritores espirituais, que falaram da maneira de ler um livro para dele extrairmos o alimento de nossa alma, aconselham a parar de ler assim que a alma se sinta atingida. (…) No fundo, o que o escritor deseja é terminar numa alma. Ele nos oferece entrelinhas, margens, para que escrevamos as nossas ideias entre as dele. Nada é mais comovente que um livro aberto na mesma página sob um olhar atento, enquanto se espera pelo ruído da folha que não é virada.” ~ Jean Guitton
O Jean Guitton segue dizendo que se devemos evitar escrever livros se não tivermos a convicção de que temos algo para transmitir que ninguém possa dizer por nós, é aconselhável evitarmos ler se não sentimos um apelo para isso. “Um verdadeiro livro escreve-se por necessidade, tal como uma verdadeira leitura é a que fazemos num estado de espírito de fome e desejo.”
Rejeitar a sede dos livros também se conecta a outra máxima, essa que peguei do Alex Castro em “Atenção”: “Menos leitura e mais jardinagem.”
Suponhamos que você passaria oito ou dez horas ao longo de cinco dias para ler um livro de duzentas páginas. Quem sabe não vale mais a pena economizar o valor do livro e encontrar um lugar tranquilo para ocupar esse tempo fazendo a jardinagem do seu cérebro, podando árvores e arrancando ervas daninhas?
“Quantos preconceitos, falsidades, distorções, mentiras, estereótipos, lugares comuns você não tem aí dentro? Em vez de absorver mais e mais novas verdades, em um verdadeiro frenesi acumulativo cultural, coloque o lixo pra fora. Em vez de ler, “desleia”. Ao invés de aprender, desaprenda.”
Quando falo que a maioria dos livros não valem a pena não é só por existir muitos mal escritos, mal desenvolvidos ou sem coerência, é porque dificilmente você vá encontrar muitos livros que te despertem os sentimentos de que descreve o Guitton.
E não é que você só possa ler livros que provoquem isso também. Faltou mencionar a pré-regra básica: ler o que você quiser. Ou melhor, leia se você quiser. Num país de poucas pessoas leitoras, graças a romantização dos livros, o lobby da leitura se tornou apelativo. Mas ninguém precisa necessariamente ler.
Ainda que eu ache a leitura profunda das formas mais importantes para se aprender sobre o mundo e adquirir sabedoria, existem muitas outras maneiras para isso. Mas se o seu lance for realmente a leitura, é bom ter em mente a máxima do imperador romano.
Rejeita a sede dos livros. Leia, acima de tudo, o que dá prazer, pois extrair o alimento de nossa alma dificilmente será possível sem isso.
III. Ler mais para ter menos certezas
Se menos leitura e mais “jardinagem” pode te ajudar a saber mais. É bom estar preparado para ler mais e saber menos.
Uma das minhas citações preferidas é uma que, além de muito visual e comprovada diariamente, se aplica muito bem a leitura:
“À medida que nossa ilha de conhecimento cresce, o mesmo acontece com a praia da nossa ignorância”. ~ John Wheeler
Outra “regra” que retirei de “Atenção” é sempre ler pelo menos dois livros sobre cada assunto novo. Ler apenas um livro dá uma falsa sensação de conhecimento. Passamos de não saber nada para saber muita coisa sobre determinado tema. Chega a ser intoxicante e tentador pensar que “agora sim entendo do tema x”. Ler um segundo livro sobre o mesmo assunto quebra esse efeito.
O paradoxo é que ler mais de um livro sobre um mesmo assunto não significa saber mais sobre o assunto. Significa se dar conta do tamanho da nossa ignorância sobre o assunto. E isso não só é bom, como desejável. Vale lembrar a citação do Taleb compartilhada na última edição.
Portanto, leia bastante. Se quiser, se der prazer. Por puro entretenimento ou pra ter a alma tocada.
Desleia. Rejeita a sede dos livros, a romantização e o lobby apelativo da leitura.
Leia mais para saber menos. E leia como quem observa baleias.
🔗Conecta Links
◾ Para não chamar de regras, compartilho em "Como ler mais" o que chamo de atitudes que me ajudaram a consolidar o hábito da leitura. É engraçado olhar pra trás e ver quanta coisa mudou da minha abordagem sobre isso. Mas acho que o texto ainda vale e se você se questiona ou se tortura "querendo querer" ler mais, pode encontrar coisas úteis nele.
◾ Todos os livros de empreendedorismo e autoajuda em apenas um texto. Esse é o tipo de texto que gostaria de ter escrito. E que também gostaria de ter lido lá atrás quando pulei de cabeça nos livros de autoajuda. Apesar de ser voltado mais pra galera empreendedora startupeira, vale pra qualquer um que busca se tornar um leitor mais ativo e consciente sobre aquele lobby da leitura. E ainda tem umas indicações de livros bem importantes no final.
◾ "Um guia cultural para entender como os EUA se tornaram uma sociedade dividida". A Trump-literatura, o feminismo, as armas, os opiáceos e o Vale do Silício, publica o El País, dominaram os quatro anos de mandato do presidente (que até o momento em que escrevo não sabemos se foi reeleito ou não). "Para entender a presidência de Donald Trump, basta observar seus produtos culturais." (...) "As obsessões editoriais dos últimos quatro anos refletem, em certa medida, as novas feridas que Donald Trump deixou em sua passagem."
◾ Há coisas divertidas para se fazer na quarentena? "O que é se divertir?" Uma exploração espirituosa e esclarecedora sobre o conceito de diversão no "novo normal". Umas das raras peças sobre comportamento em tempos de pandemia que realmente funciona em explicar muitas das nossas emoções.
◾ Como uma das estrelas mais bem pagas do futebol desapareceu? Essa espetacular matéria do New York Times revela o que está por trás do apagamento de Mesut Özil que não joga pelo Arsenal, seu clube, desde que criticou a China pela perseguição aos uigures.
◾ Uma surreal nova livraria foi aberta na China. As fotos do seu interior são realmente impressionantes.
◾ Um dos podcasts de música mais populares do mundo, o Song Exploder virou série da Netflix. "Por Trás Daquele Som" mostra como algumas canções de sucesso foram feitas. Desde a composição da letra e melodia e mais todo o processo percorrido até o produto final. São episódios de 25 minutos cada e a revelação de que a transformação do podcast pra outro meio foi muito bem sucedida. Dos 4 episódios, destaque para o do Ty Dolla $ign e especialmente o do REM, sobre a criação de seu principal hit, "Losing My Religion".
◾ Um perfil no Instagram com fotos tiradas em todo o mundo que capturam locais estranhos e bonitos que parecem locações de filmes do Wes Anderson. Essa é a ideia do AWA, Accidentally Wes Anderson, que tem mais de 1 milhão de seguidores e virou livro — com prefácio do próprio Wes.
◾ O Alex Castro, citado na edição de hoje, além de textos e livros, mantém o perfil "outrofobia" no Instagram, onde tá sempre fomentando conversas sobre livros e literatura.
📚 Conecta Livros
◾ O Trabalho Intelectual: conselho ara os que estudam e ara os que escrevem, de Jean Gitton.
Editora Kírion. 160 páginas.
Não lembro como cheguei a esse livro que até então nunca havia ouvido falar e gostei bastante da experiência de ter lido. A obra se dirige a todos aqueles que, "apesar da barafunda da vida moderna, ainda não renunciaram à leitura, à escrita, ao pensamento." Apesar de se colocar como um manual de conselhos pra quem deseja se dedicar à uma vida de estudos, achei uma leitura estimulante e nada maçante, com muitos conselhos práticos. É uma ótima leitura pra complementar e se aprofundar sobre as máximas que trouxe hoje.
◾ Musashi, de Eiji Yoshikawa.
Editora Estação Liberdade. 1832 páginas.
Se o assunto é leitura que nos estimula pelo prazer, Musashi engaja de um jeito surreal. Misturando situações e eventos reais, conta a trajetória do maior samurai de todos os tempos, que além de inventar um novo estilo de combate, terminou a vida escrevendo um tratado filosófico ("O Livro dos Cinco Anéis", considerado um clássico da literatura militar japonesa assim como "A Arte da Guerra"). Um romance histórico sobre virtudes como honra, dignidade, perseverança, disciplina e outras bases morais e que de quebra nos leva para um longo mergulho ao Japão medieval. Tudo com sua devida romantização e dramatização.
Obrigado por seguir conectado e até a próxima.
~ Edgar
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