Nostalgia Futebol Clube. CP#62
E o esporte que serve ao mesmo tempo para me dar estrutura e me tornar um tanto desequilibrado.
Nesta edição:
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💬 Nota Final
“Falar de futebol no Brasil do genocida é momento de descanso e recreio pra alma.” ~ Lúcio de Castro.
I.
De tantas coisas que o distanciamento social nos priva, uma das que mais sinto falta é o futebol. Frequentar um estádio, se reunir com amigos naquele bar pé quente para assistir ao jogo, jogar as sagradas peladas. Desde o início disso tudo me pego em vão tentando nutrir essa ausência.
Parte da minha rotina era pautada pelo calendário futebolístico. Segunda a noite era dia de pelada, logo, qualquer tipo de compromisso não tinha vez nesse horário. A mesma coisa quarta a noite, que era dia de jogo na TV.
A agenda do sábado pela manhã era toda dedicada a pelada fundada por meu pai, que ao “pendurar as chuteiras”, passou o bastão para mim. As outras atividades do fim de semana acabavam sempre condicionadas ao horário dos jogos do Flamengo. Isso sem falar dos desdobramentos destes principais eventos.
Apesar do futebol ter voltado desde o ano passado, não é a mesma coisa.
Os campeonatos continuam sem torcida, e seja pelo estádio vazio ou pela solidão do sofá de casa, o clima — um dos ingredientes fundamentais da experiência do futebol — não é o mesmo. Já os treinos de funcional com o personal soccer (escolinha de futebol para idosos, segundo os amigos espirituosos), ainda que mate a saudade do contato com a bola, não chegam aos pés da competitividade e da resenha das peladas. (como você fala “pelada” aí onde mora?)
Competitividade, amizade, masculinidade, identidade.
Seja como entusiasta do esporte, praticante do jogo ou pela minha paixão pelo Flamengo, o futebol serviu ao mesmo tempo pra me dar estrutura e me tornar um pouco idiota. Ele se misturou e moldou boa parte das minhas relações, do meu comportamento, me ensinou muito sobre sofrimento como entretenimento, sobre escolhas e contribuiu bastante para minha construção como homem (para o bem e para o mal).
Afinal, nunca é só futebol.
II.
Esses dias minha mãe pediu pra dar uma olhada em uns cadernos na casa dela. Ver o que era pra jogar fora e o que eu queria guardar. Me peguei folheando um caderno com todas as páginas preenchidas por tabelas de jogos, ranking de melhores times, artilheiros, etc.
Era um dos cadernos que anotava os campeonatos de vídeo game que fazia com o Guiggs (se você lembra do Manchester United da década de 90 vai pegar a referência do apelido).
Toda tarde ele ia pra minha casa, a gente sorteava os times, escrevia os jogos no caderno, fazia as partidas no PS2 e anotava os resultados. Tinha uma época que só parávamos quando dava a hora de começar Uga Uga (na época conhecida como novela das sete — 19h). Nem o combo futebol + playstation era suficiente para que perdêssemos a Mariana Ximenes na TV.
A mãe do Guiggs vivia falando que não sabia como a gente era amigo, porque éramos dois moleques que não abriam a boca pra falar. A ida junto para os treinos, as peladas no campinho da rua da casa dele, as tardes regadas a pro evolution soccer no vídeo game, o futebol sempre achava um meio de servir como a ponte que facilitava a comunicação difícil.
Tempos depois descobri que o Guiggs usava as tardes lá em casa pra escapar das tardes na casa dele, que não eram nada fáceis.
Nunca é só futebol.
III.
Nunca foi só futebol para um primo quatro anos mais velho que eu. Nos campos ou nas quadras, nunca tinha visto ninguém jogar mais bola que ele. Metade daquele talento já me deixaria com grandes chances de sucesso numa possível carreira. Sempre me perguntava se quando tivesse a sua idade, seria capaz de jogar daquele jeito.
Ele não emplacou. Era adventista. E para os adventistas, o sábado só pode ser dedicado a orações e reflexões. Não tenho ideia do peso que isso teve na sua escolha de não seguir em frente (se é que ele chegou a fazer uma escolha). Eu era muito novo e essa foi apenas a história que ficou na minha cabeça.
Lembro de ficar me perguntando, “e se fosse comigo?” O que faria no lugar dele se essa escolha se apresentasse pra mim?
Meu cenário foi mais comum. Jogava uma bola boa mas nada de especial. Com sorte, poderia dar certo. Mas quando cheguei ali por volta dos 17, coisas cada vez mais interessantes do que pegar dois ônibus para ir treinar apareciam (tirar um belo cochilo pós Globo Esporte era só uma delas). E mais difícil ainda era abdicar das noites de sábado para encarar um jogo domingo pela manhã.
Por fim conversei com meu pai, que sempre me incentivou, e contei que ia parar de treinar. No fundo queria que ele decidisse isso por mim. Ele falou que a decisão era minha e que se aquela era minha vontade, estava tudo bem.
Aquilo me pegou de surpresa. Porque no fundo no fundo mesmo eu gostaria que ele não me deixasse parar. Queria que ele fosse a figura que me incentivasse a continuar, que não me deixasse desanimar. Ele deve ter ficado feliz quando viu que as tardes indo para o treino se transformaram em idas, ainda que sonolentas, para o estágio.
Carreguei por um bom período essa frustração, não por achar que poderia dar certo como jogador de futebol, mas por me ver desistindo de algo que persegui por tanto tempo de forma tão fácil.
Enquanto via colegas de treino menos habilidosos avançando e ouvia histórias sobre determinação (e naquela linha “não desista dos seus sonhos”), me culpava por ter me entregado a preguiça e ter parado na primeira dificuldade.
Durante um tempo, ainda cheguei a culpar o meu pai por não ter me impedido de desistir.
O futebol continuou relevante na minha vida — time do bairro, equipe da faculdade, campeonatos pela região — e aquela pulguinha nunca saiu da minha orelha. E se eu tivesse continuado?
Talvez Freud explique, mas eu não sei até que ponto esse sentimento afetou minha relação com meu pai e futuros comportamentos. Também não sei se foi intencional ou não, mas tirei muitas lições sobre responsabilidade, escolhas e consequências desse episódio.
Porque com intenção ou não, era isso que meu pai fazia. Usava o futebol como metáfora para me ensinar ou simplesmente se aproximar de mim.
IV.
Nunca é só futebol. E o futebol como pano de fundo pra relação de pai e filho é outro clássico também presente na minha história até hoje.
Meu pai puxava qualquer assunto sobre futebol pra me fazer começar a falar e depois chegar ao assunto que ele queria. Ainda hoje, quando nos vemos, o primeiro assunto que o meu pai solta na conversa é algo na linha: “e o Mengão, hein?”, “Viu o tricolor ontem?”
Somos próximos e nos damos muito bem, ainda que nunca tenhamos conseguido superar essa barreira de ter o futebol como o principal recurso discursivo entre nós.
Agradeço ao meu pai por ter me apresentado o ludopédio — e por ter me passado os genes que me deram alguma intimidade com ele. Nos tempos de escola, os benefícios de se gostar de futebol (e de nunca ser o último a ser escolhido em quadra), foram incalculáveis. E agradeço por ter me deixado a vontade para fazer e assumir minhas escolhas. Infelizmente, retribuí com o desgosto de não ser Fluminense.
Talvez eu superestime o futebol como metáfora ou talvez não seja exagero a ideia dele ter moldado boa parte da minha vida. Certeza mesmo é a falta que o futebol pré pandemia faz (2019, o esquadrão de Jorge Jesus, Maracanã lotado, nem sinal de covid, parece tão perto e tão longe ao mesmo tempo).
Mais do que me lembrar o quão saudosista e necessitado de futebol (e Flamengo) este cidadão aqui é, sinto falta porque ele me desperta esses sentimentos e momentos nostálgicos e porque ele me aproxima de quem eu sou, da minha história.
Nunca é só futebol. E que volte logo a ter clima.
“Por favor, seja tolerante com aqueles que descrevem um momento esportivo como o melhor da sua vida. Não é por falta de imaginação. Não significa que tivemos vidas tristes e estéreis. A vida real é apenas mais pálida, mais maçante e contém menos potencial para o delírio inesperado.” ~ Nick Hornby
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Vídeo bem legal sobre a contradição de sentimentos que formam a nostalgia: felicidade intensa por momentos vividos no passado e, ao mesmo tempo, a melancolia de saber que eles não voltam mais. Experimente a nostalgia, mas com moderação.
◾ Como o PSG se tornou o clube mais fashion do mundo.
Vinte anos atrás quase ninguém conhecia o Paris Saint-Germain fora da França. E mesmo sem ganhar nenhum título de expressão internacional, de alguma forma eles conseguiram se tornar uma das marcas mais icônicas do mundo esportivo. O vídeo (de impecável qualidade de produção), analisa como o PSG conseguiu, sua estratégia e como ela está relacionada à colaboração com o patrocinador do kit Nike e a marca Jordan. A questão que fica é se a extraordinária marca e a estabilidade financeira se traduzirão na conquista do mais cobiçado troféu da Europa, a Champions League.
◾ Superliga: do segredo ao colapso.
Um anúncio em 18 de abril colocou o esporte mais popular do mundo à beira do abismo. Uma nova Super Liga europeia anunciada num domingo a noite se tornou um fracasso na quarta pela manhã e essa história, desde o plano ao colapso espetacular, é recheada de intrigas, reuniões secretas, alianças implausíveis de fundos de hedge americanos, oligarcas russos e magnatas industriais europeus, egos inflados, traições e protestos. Digna de filme.
“O futebol é a coisa mais importante dentre as coisas menos importantes.” ~ Arrigo Sachi
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◾ Febre de Bola, de Nick Hornby.
Companhia das Letras. 352 páginas.
Um dos meus favoritos da vida. Publicado em 1992, é o primeiro livro de Nick Hornby (o mesmo de “Alta Fidelidade” e “Um Grande Garoto”), e quase uma autobiografia do autor. Por relacionar acontecimentos marcantes de sua vida com sua paixão pelo futebol e sua obsessão pelo Arsenal, acaba sendo uma espécie de biografia para todos que nutrem a paixão pelo esporte e, principalmente, por um clube de coração.
Através de contos, Nick usa sempre uma partida como pano de fundo para relatar momentos da sua vida, sejam eles fracassos ou conquistas, cobrindo um período que vai desde a década de 60 a data da publicação do livro. A Copa do Mundo de 70, as tragédias de Heysel e de Hillsborough, o hooliganismo, sua carreira e seus relacionamentos são apenas alguns eventos narrados pelo autor de sua perspectiva única e, ao mesmo tempo, universal para qualquer amante do futebol.
Impossível não se identificar e ideal para dar de presente para quem não entende os obcecados de plantão.
"Eu diria ainda que nós também “vivemos” o futebol, ao passo que o inglês, ou o tcheco, o russo apenas o joga. Há um abismo entre a seca objetividade europeia e a nossa imaginação, o nosso fervor, a nossa tensão dionisíaca." ~ Nelson Rodrigues
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◾ Ted Lasso, na Apple Tv+
A relação dos ingleses com o futebol também é bem intensa e a Premier League (campeonato inglês) é hoje a principal liga nacional europeia. Ted Lasso (nome do treinador de futebol americano que atravessa o oceano para treinar um clube de futebol na Inglaterra e que dá nome a série), alia esses ingredientes ao peculiar humor britânico e o resultado é um golaço da Apple. Leve, divertida, previsível mas com espaço para surpresas e mais do que apenas uma série com temática esportiva. Substituiu The Office na grade durante o horário de almoço aqui em casa. (Até a Bárbara, que não aguentava mais documentários sobre Sunderland, Manchester City e Barcelona, gostou e acompanhou essa junto comigo).
💬
Já faz um tempo desde a última edição. É bom estar por aqui de novo. Obrigado por seguir daí. Aproveito para dar boas vindas a quem chegou nessas últimas semanas. Sinta-se a vontade para responder esse e-mail. E curta, comente e compartilhe a Conectando Pontos. 🙂🧡
~ Edgar.
👨💻Textos e curadoria por Edgar Oliveira.
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"Nunca é só futebol. E o futebol como pano de fundo pra relação de pai e filho é outro clássico também presente na minha história até hoje."
Este é um grande legado que fortifica, por demais, a relação pai e filho. No meu caso, então, que torço para o mesmo time de meu pai - até mesmo por uma "imposição natural" - (O GLORIOSO BOTAFOGO), é mais legal ainda, pois, compartilhamos das mesmas angústias e glórias. Inúmeras lembranças em estádios - ele se orgulha de ter trocado a fralda de todos os 3 filhos em estádios de futebol, de tão novos que ele nos levava!
Em tempos modernos, assistimos aos jogos do Botafogo por chamada de vídeo - ele sofrendo daí e eu daqui.
=)
"A mãe do Guiggs vivia falando que não sabia como a gente era amigo, porque éramos dois moleques que não abriam a boca pra falar." Huauahuhahaua
Esse era um clássico de tia Ângela!!!