A última tábua de salvação. CP#41
"A tecnologia nos dá um poder imenso, mas ainda somos nós que decidimos o que fazer com ela."
Nesta edição:
I. Essa newsletter é muito longa.
II. O carro filosófico.
III. A última tábua de salvação.
IV. Conecta Links.
V. Conecta Livros.
Queria ter enviado essa newsletter antes. Pra sobrar mais tempo pra escrever a última do ano. Com aquela clichê porém indispensável retrospectiva e "melhores de 2019". Como de costume atrasou. E pra não atrasar ainda mais é que você tá recebendo nessa quinta aleatória.
A marca por aqui esse ano foi a falta de consistência. O que era pra ser quarta sim e quarta não, virou quarta sim e três não. Depois sexta sim e quatro sextas não. Se continuarmos por aqui ano que vem esse é um ponto a se corrigir. O outro é sobre o tamanho dessa newsletter.
I. Essa newsletter é muito longa
Pois é. Esse é um dos comentários que mais recebo sobre essa newsletter. Nem sempre é uma crítica. Na verdade, quase sempre falam isso em forma de elogio. Ou é assim que eu entendo.
Por isso me recuso a admitir que isso é um problema e procuro enxergar como um diferencial. Mas acho que é hora de ceder.
Uma newsletter talvez não seja o melhor formato para textos e conteúdos mais longos. E por mais que a frequência seja menor, também não deve ser o melhor formato para despejar uma tonelada de conteúdo em cima de você. Pelo menos não tudo aqui, dentro de um longo e-mail.
O problema de uma newsletter muito longa é o mesmo de um vídeo com mais de 20 min no Youtube (ou um áudio com mais de um min no whatsapp). Por mais que pareça interessante você vai jogar aquele conteúdo no limbo do “depois eu vejo”.
É o que imagino que aconteça com essa newsletter. Ainda que muitos de vocês a resgatem semanas depois, muitos desses e-mails acabam esquecidos naquela pasta que você acha que vai acessar mas nunca tem tempo pra isso.
Não quero ficar esquecido nesse limbo. Então diga aí, quantos minutos você acha que essa newsletter deveria ter?
De repente consigo voltar pra frequência prometida e não cumprida. Ou até mesmo voltar pro semanal. E quem sabe uma newsletter mais curta deixe mais tempo pra gente pensar em questões mais filosóficas.
II. O carro filosófico
Não queria citar o Yuval Harari tão cedo já que ele apareceu por aqui, salvo engano, nas três últimas edições. Só que ele segue me dando assunto. Há algumas semanas atrás tivemos sua participação no Roda Viva.
Vale a pena procurar toda sabatina mas vou destacar dois trechos.
O primeiro quando perguntado sobre o sentido da vida, identidade e depressão nos tempos modernos:
“(…) Eu quase diria que enfrentamos um tipo de falência filosófica e espiritual, porque todos os modelos filosóficos e religiosos, espirituais que tínhamos nos diziam que a tomada de decisões é a coisa mais importante da vida humana, e eles não podem conceber uma vida humana na qual a maioria das decisões é um algoritmo que toma por nós. Acho que isso não é responsabilidade dos governos. É responsabilidade dos filósofos, poetas, artistas e indivíduos explorar isso. O que significa viver numa situação assim? E nós precisamos quase de uma revolução filosófica ou espiritual para lidar com esse tipo de desdobramento sem precedentes.”
E esse abaixo, sobre a necessidade de se pensar historicamente hoje:
“(...)A tecnologia nos dá um poder imenso, mas ainda somos nós que decidimos o que fazer com ela. E isso é tarefa das ciência sociais e humanas. Acho que hoje os filósofos são mais importantes do que nunca na História, porque muitas questões filosóficas que por milhares de anos foram apenas teóricas, agora estão se tornando questões práticas. Questões sobre o sentido da vida, sobre o livre-arbítrio, se ele existe ou não, agora são muito práticas. As pessoas no Vale do Silício entenderam que precisam de filósofos e historiadores. E acho que também as pessoas das ciências sociais precisam entender que agora tem uma imensa responsabilidade e para fazer frente a essa responsabilidade, elas precisam entender melhor de tecnologia. Os filósofos não deveriam ter medo da inteligência artificial ou da genética. Deveriam lidar mais com elas.”
Não faz muito tempo que a filosofia foi declarada como morta. Hoje, quem ainda questiona a função prática da filosofia, vê um nome de peso como Harari dizendo que precisamos de uma revolução filosófica e que a filosofia é mais importante do que nunca.
“muitas questões filosóficas que por milhares de anos foram apenas teóricas, agora estão se tornando questões práticas.”
Vejamos o caso da tomada de decisão. A maioria das pessoas não se conhece muito bem. Some isso ao fato de que hoje em dia a “verdade” é definida pelos resultados principais da busca do Google. Bilhões de pessoas passaram a confiar no algoritmo de busca do Google em uma tarefa das mais importantes: buscar informação relevante e confiável. Seja sobre si ou sobre o mundo.
Se hoje já confiamos na “palavra” do Google na busca por conhecimento, é questão de tempo para que muito do nosso drama da tomada de decisão seja transferido para os algoritmos.
Ainda que esses algoritmos jamais consigam tomar decisões importantes por nós, afinal, esse tipo de decisão normalmente envolve uma dimensão ética, e algoritmos não entendem de ética, dispositivos como smartphones e veículos autônomos já tomam decisões que costumavam ser monopólio humano. E com isso começam a se deparar com o mesmo tipo de problemas éticos que têm perturbado os humanos por milênios.
Por exemplo, suponha que um garoto correndo atrás de uma bola se veja bem em frente a um carro autodirigido. O algoritmo do veículo autônomo tem que decidir entre desviar do garoto e correr o risco de se chocar com um caminhão na pista oposta e ferir seu passageiro.
Filósofos têm debatido esse “dilema do bonde” por milênios . Esses debates têm pouco impacto no comportamento efetivo porque em tempos de crise os humanos, com frequência, esquecem suas opiniões filosóficas e seguem suas emoções e seus instintos.
Os algoritmos de computação, no entanto, não foram moldados pela seleção natural, e não têm emoções nem instintos viscerais. Daí que em momentos de crise eles poderiam seguir diretrizes éticas muito melhor que os humanos, desde que nós, humanos, encontremos uma maneira de codificar a ética em números e estatísticas precisos.
“A tecnologia nos dá um poder imenso, mas ainda somos nós que decidimos o que fazer com ela.”
Se seu carro autodirigido estiver programado para desviar para a pista oposta a fim de salvar o garoto que apareceu no seu caminho, pode apostar sua vida que é exatamente isso que ele fará. O que significa que, ao projetar seus carros autodirigidos, a Toyota ou a Tesla vão transformar um problema teórico de filosofia da ética num problema prático de engenharia.
Pela primeira vez na história, você poderá processar um filósofo pelos infelizes resultados de suas teorias, porque pela primeira vez na história você poderá provar que há uma ligação causal direta entre ideias filosóficas e eventos da vida real.
A mesma lógica vale não só para a direção de automóveis, mas, para cada vez mais, diversas outras situações. Assim, se você quer estudar algo que lhe assegure um bom emprego no futuro, talvez a filosofia não seja uma aposta tão ruim.
Mas o renascimento da filosofia não é só uma questão profissional ou de ajudar engenheiros a programarem melhores algoritmos. A filosofia é cada vez mais prática e necessária para qualquer cidadão “comum” longe do Vale do Silício.
III. A última tábua de salvação
“Em um mundo em crise, no qual a lógica da concorrência que caracteriza a globalização parece alastrar-se cegamente, sem que ninguém — sejam os chefes de Estado mais poderosos ou os dirigentes das multinacionais — consigam mudar seu curso, a filosofia certamente gera crescente interesse e, talvez, a esperança de reencontrar marcos de referência e sentido para nossa existência. O desejo de sair desse sentimento de desapossamento do nosso destino revela-se tanto mais forte na medida em que os ideais tradicionais — as grandes narrativas (espirituais, patrióticas ou revolucionárias) nas quais nos inspirávamos para orientar nossas vidas e sublimá-las — perderam sua força de convicção diante de uma realidade sobre a qual já não temos ascendência. A partir do momento em que já não aderimos a eles o suficiente, se não quisermos nos comprazer em uma espécie de ressentimento nostálgico, não temos escolha senão buscar outra tábua de salvação. (…) Não surpreenda que esse contexto favoreça uma explosão de curiosidade ao pensamento filosófico.” ~ Luc Ferry
A passagem acima (do livro indicado na atual sessão Conecta Livros ali embaixo) poderia tranquilamente fazer parte da edição anterior onde conversamos sobre mitos e narrativas coletivas. Já nas edições #32 e #33, falamos sobre porque precisamos de mais tempo de descanso, de ócio, de contemplação e reflexão.
Seguindo com o exercício de conectar pontos, lembro que vimos na edição #37 o cada vez mais notório ressurgimento de debates já resolvidos pela ciência. Que acontece muito pelo fato também mencionado na última edição sobre nós humanos acreditarmos menos em fatos e dados do que em histórias e ficções.
O que me leva a esse novo ponto. Precisamos de mais tempo para estudar e praticar a filosofia.
Em certa edição o Startup da Real levantou a seguinte bola:
As armas que distorcem o que a ciência diz e implantam ideias como a volta do trabalho escravo, trabalho infantil, negação do aquecimento global, os supostos lados positivos do nazismo, terraplana, antivacina, negação do desmatamento da Amazônia e as milhares de teorias que estão na mente dos políticos que estão no poder, são puramente filosóficas. O manual de argumentação desse grupo é basicamente o que já víamos na Grécia Antiga, com os sofistas.
A filosofia, que supostamente estava morta, volta a ser a única arma para argumentar e iluminar pensamentos. É com a filosofia que trabalhamos na capacidade de pensar criticamente e enxergar os erros dos argumentos tendenciosos. É com ela que desenvolvemos nossos valores e construímos uma defesa contra a manipulação.
Ao mesmo tempo em que nossa visão de vida se baseia cada vez mais na IA para tomar decisões por nós, muitos dos embates modernos não estão no campo dos dados, mas no campo do uso da linguagem, da argumentação e do debate.
Ainda que a filosofia vá além desses campos e não se reduza a “escola do pensamento crítico”, ao explorá-la e praticá-la, ganhamos mais clareza e discernimento, tão necessários para se navegar no mundo moderno.
🔗Conecta Links
◾ Sócrates: coragem, filosofia aplicada ao dia a dia e o poder da educação [Leitura, 6 min, em português]. "Associamos filosofia com vãs discussões acadêmicas sobre o significados de coisas óbvias. Exatamente o contrário do que Sócrates vem a representar para o mundo: o uso da filosofia como auxílio na busca uma vida melhor."
◾ A praticabilidade da filosofia [Leitura, 3 min, em português]. "O estudo da filosofia cultiva nossa razão e nossa ética de forma que possamos fazer bem nosso trabalho e ajudar os outros a fazer o deles. Portanto, não descarte a filosofia, tem muita gente contando com você."
◾ Por que você deveria estudar filosofia [Leitura, 23 min, em inglês]. "Se você dissesse a alguém que havia descoberto um sistema operacional por ser um bom ser humano — como resolver os problemas da vida, como administrar nosso temperamento, onde encontrar significado e como pensar na morte — a maioria das pessoas se animaria e se debruçaria em cima disso."
◾ O ponto cego dos algorítimos [Leitura, 5 min, em inglês]. Esteja você investindo, procurando apartamentos ou escolhendo seu próximo livro, fazer o oposto do que o algorítimo padrão diz pra você fazer pode ser a melhor opção.
◾ Especial Listas [Leitura, 3 min, em português]. A Ana Luísa é uma das leitoras dessa news que tem seu próprio projeto. A última edição da sua newsletter "umas coisas ali", trouxe um compilado de links com listas de melhores do ano de diversos sites especializados. Filmes, música, livros, tem pra todos os gostos. Se você gosta de listas, aproveite o passeio e se cadastre para receber umas coisas ali bem interessantes da Luíza.
📖 Conecta Livros
A mais bela história da filosofia, de Luc Ferry.
Editora Bertrand. 322 páginas.
Antes de se aprofundar em qualquer linha do pensamento filosófico é fundamental começar pela história da filosofia. Ter essa base é importante para contextualizar. Esse é um livro que conta, de maneira clara e acessível, a história do pensamento filosófico, partindo da Antiguidade e mostrando os desdobramentos que levaram um sistema de pensamento a substituir os anteriores chegando até a desconstrução moderna. Mesmo que algumas partes pareçam difíceis de encarar, com paciência e atenção se consegue progredir bem.
Com Borges, de Alberto Manguel.
Editora Âyiné . 72 páginas.
Me identifico com o pensamento de que "o paraíso deve ter a forma de uma biblioteca", de Jorge Luis Borges. Nesse pequeno livro o também renomado autor Alberto Manguel conta sua experiência sobre o período em que lia livros para Borges, que ficou gradualmente cego entre os 30 e 58 anos. Por ter sido um grande intelectual, as referências de Borges remetem às religiões antigas e filosofia. A conexão de Borges com os livros e as palavras é uma forte inspiração para todos os amantes da literatura e o relato de Manguel descreve muito bem essa relação.
Bom, tentei não me alongar muito dessa vez. Eu gosto desse formato mas posso testar outros mais enxutos pra ver como fica. Reforço o pedido pelo seu feedback. E você que mandou, saiba que além de ajudar muito é sempre um prazer conversar.
Até a próxima (que espero seja ainda neste ano). Se a gente não se falar até lá, um Feliz Natal e um Feliz Ano Novo.
~ Edgar
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