Nesta edição:
I. Cansado de internet.
II. Uma nova alfabetização contra um novo tipo de ignorância.
III. Todo mundo precisa ser um produtor de conteúdo?
IV. Conecta Links.
V. Conecta livros.
Manter a roda girando é mais fácil que tirá-la da inércia, já dizia Murakami. Perdido o ritmo, a cada semana que passa, mais difícil fica de voltar, por mais que imaginemos o contrário. Mas finalmente essa edição saiu e o primeiro passo pra recuperar o ritmo foi dado. De "volta", então, depois de um tempo repensando minha relação com a internet e com a tal da consistência.
I. Cansado de internet
Desde a popularização dos smartphones e a ascensão das redes sociais que muito se discute sobre a quantidade e a qualidade do nosso tempo online.
Com tudo que cercou a eleição do Trump e com o crescimento da oposição à atuação das chamadas Big Techs, o debate se acentuou e passou a caminhar para uma só conclusão: a internet virou um lugar ruim pra se viver.
Talvez até por tudo que tá rolando, já que estamos passando mais tempo nesse lugar (estudos mostram que, desde o início da pandemia, nosso tempo de navegação nas mídias sociais cresceu em 61%), em 2020 cada vez mais gente chega a essa mesma conclusão.
Atingimos o auge da crise da nossa relação com a internet — e quando se fala em internet hoje, falamos quase que exclusivamente de redes sociais. Pelo que tenho observado, praticamente todo mundo (pelo menos da minha bolha) tá de saco cheio dessa vida digital.
Esse não é um problema simples pois chegamos num ponto onde a “vida digital” e “analógica” se tornou uma só. Vai ver é por isso que um dos temas mais frequentes nas mídias sociais esse ano é a nostalgia e uma certa romantização sobre aquela antiga internet. De uma época em que a gente conseguia entrar e sair dela.
Semanas atrás comentei lá no Twitter que não estava enviando newsletter porque o kalew Nicholas já estava escrevendo (com o selo Kalew de qualidade) tudo que eu gostaria na dele. Primeiro escreveu um manifesto-desabafo sobre essa nossa relação com a internet e na edição seguinte tratou do funcionamento das redes sociais e seus efeitos na nossa saúde mental. Efeitos conhecidos e já muito debatidos mas sempre necessários de serem compartilhados.
O manifesto-desabafo do Kalew me atingiu em cheio. Primeiro porque fazia um tempo que queria escrever algo na linha de “fazer a internet ser legal de novo” e ao ler seu texto com as palavras e muito dos sentimentos que eu gostaria de encaixar, de um jeito que eu não conseguia expressar, e também conhecer mais gente com percepções parecidas sobre vida online, deu uma baita sensação de alívio.
Por outro lado, como alguém que tem um canal como esse para compartilhar conteúdo, seguia com o desejo de opinar colocando a minha assinatura nessa opinião. Aquela vontade de gerar conteúdo apenas pra manter a roda girando. Aquela necessidade de ser protagonista, uma sensação que as redes tanto amplificam, como também escreve o Kalew.
Mas pra que escrever e publicar conteúdo sobre um assunto em que já existem pessoas dizendo o mesmo que eu tenho vontade de dizer?
Como alguém que prega muito a consistência, esse é um questionamento que sempre reaparece e, até por isso, acabo alternando períodos de boa constância com hiatos não programados. Esse questionamento é um dos principais motivos da minha atual crise com a internet, mais especificamente sobre escrever na internet e mais especificamente ainda, com essa newsletter.
Pelo menos esse é um questionamento que sempre acaba me lembrando do porque a newsletter é meu formato favorito, tanto pra consumir quanto pra compartilhar conteúdo.
“E daí esse estranho retorno. A melhor forma de escrever e ser lido em paz hoje em dia, sem ter que disputar espaço no shopping center infernal de lacrações e cancelamentos que virou a internet afunilada de hoje, talvez seja mesmo abrir um blog em site próprio, pedindo aos leitores que te acompanhem a um lugar diferente e silencioso, com menos links e lixo no horizonte. Quase como numa outra internet — mais parecida com aquela de antigamente.” ~ J.P. Cuenca
Compartilho do mesmo cansaço sobre as redes sociais e concordo com a maior parte do atual discurso sobre voltar aos blogs, por exemplo, e se afastar desse chorume de raiva, propaganda e fake news que se transformou a internet. Acho que uma newsletter também funciona bem pra isso. Esse é um espaço de que ainda não me cansei.
E apesar de ainda estar em busca do equilíbrio entre profundidade, constância e necessidade de produzir conteúdo nesse formato, seguirei aqui. Porque ainda que escreva apenas sobre coisas que já foram ditas, muitas delas precisam ser repetidas e espalhadas.
II. Uma nova alfabetização contra um novo tipo de ignorância
Brinca-se por aí que se você abrir a geladeira, sai alguém recomendando o documentário “O dilema das redes”, da Netflix. Sou da turma que, passado ou não o hype, reforça a recomendação. É mais um conteúdo que trata dos já muito debatidos impactos negativos das grandes empresas de tecnologia em nossas vidas, em especial os das redes sociais. Reforço também que é um tema sempre necessário de ser compartilhado.
O mérito do documentário é apresentar o problema através de especialistas que ajudaram a criar todo o cenário em questão e, graças ao seu didatismo pé no chão e a popularidade da Netflix, apresentar esse problema a pessoas que ainda não estavam inseridas no debate.
Um debate que é inescapável e se tornou até batido pra qualquer um do meio da comunicação e da tecnologia mas que deveria ser acessado por cada vez mais pessoas de fora dessas bolhas.
Antes de assistir "O dilema das redes", comecei a ler "A Dieta da Informação" que, ao mesmo tempo em que apresenta falhas parecidas com a do documentário (apresentar soluções simplistas, por exemplo), também apresenta méritos semelhantes.
Através de um paralelo entre a indústria dos alimentos e da informação, o autor Clay Johnson nos ajuda a entender de forma simples e didática boa parte do principal problema da atual era da desinformação.
Dessas referências, somadas ao desejo de colocar pra fora algumas coisas da minha DR com a internet, saiu o texto "Uma nova alfabetização contra um novo tipo de ignorância", com a intenção de divulgar ainda mais a importância de um consumo de informação mais consciente e a lógica por trás das mídias sociais. Além de tentar mostrar a necessidade de se levar esses assuntos para lugares onde eles ainda não são óbvios.
(Contei também lá no Twitter como fiquei muito tempo agarrado nesse texto. Não que ele tenha ficado bom mas é que escrever mal também da trabalho. E só pelo trabalho mereço que você clique aí na imagem e passe lá no Medium pra ler, deixar suas "palminhas" e me dizer o que achou - não necessariamente nessa ordem.)
Ser muito informado não virou sinônimo de ser bem informado. Pelo contrário.
No texto, falo um pouco sobre como a industrialização fez com a informação o mesmo que fez com a indústria dos alimentos. Transformou a obesidade num problema maior que a fome.
E isso passa pelo fato de que, ainda usando os paralelos do Johnson, pra quem produz conteúdo é muito mais lucrativo investir em saciar do que em alimentar. É de novo aquele questionamento que motivou parte da minha crise. Como não contribuir para esse ciclo onde o volume puro e simplório se sobressai sobre a qualidade?
III. Todo mundo precisa ser um produtor de conteúdo?
Dia desses vi uma publicação no Instagram dizendo que se toda evolução humana se deu justamente por conta da produção de conteúdo, o fato de agora todo mundo ser um creator em potencial é algo muito positivo pra toda sociedade.
Em “A Dieta da Informação”, Johnson coloca a produção de conteúdo como um dos quatro componentes para o que ele chama de “alfabetização de dados” — os outros seriam buscar, filtrar e sintetizar as informações.
“A criação de conteúdo e a auto expressão digital por meio da elaboração de um conteúdo de texto, de áudio ou de vídeo são componentes essenciais de uma dieta da informação saudável. A criação e publicação de conteúdo são parte fundamental da alfabetização, pois nos auxiliam a entender melhor o que dizemos, tanto por meio da reflexão interna necessária para que nossas descobertas possam ser compreendidas por outros quanto pelo feedback público que obtemos ao colocar nosso conteúdo perante os outros.” ~ Clay Johnson
Eu concordo com a importância que o Johnson dá a produção de conteúdo como concordo que sua democratização seja algo muito positivo.
O problema é que, como aconteceu com a democratização do acesso, muita gente resolve produzir conteúdo ou expor seu trabalho nas redes, seguindo toda essa perniciosa estrutura de marketeiros digitais e a manipulatória lógica do modelo de negócios das redes sociais.
Pra muitos, então, o objetivo de produzir conteúdo acaba não sendo o de trocar informações relevantes e úteis, colher feedbacks ou simplesmente compartilhar interesses espontâneos. O objetivo é apenas dar as pessoas aquilo que elas querem. Saciar. Não alimentar.
Tudo acaba girando em torno de criar negócios digitais, de transformar a vida social e o hobby em ocupação profissional. E assim, a grande maioria (e me incluo nessa) não consegue existir nas redes de forma orgânica, espontânea e autêntica.
Conscientes ou não viramos personas, vendedores e produtos ao mesmo tempo. E dessa forma o ciclo se mantém com todo mundo se adequando as métricas baseadas em volume e engajamento por likes e compartilhamentos.
Essa rejeição ao imediatismo das redes sociais e a consistência sem levar em conta a qualidade gera tendências interessantes como o “slow blogging” e o “slow content”, que apelam por mais reflexão e tempo no conteúdo que consumimos e produzimos. Não sei até que ponto essas tendências são capazes de se tornar práticas que melhorem aquele ciclo ou se são apenas uma outra roupagem que no fim das contas seguirá a mesma lógica atual. Ao menos é uma boa discussão de se ver crescendo atualmente.
Quando pensei em escrever sobre fazer a internet ser legal de novo, nem era pra romantizar a internet da virada do milênio. Era pra mostrar que ela não precisa ser o que se tornou. Ou que na verdade ela continua sendo bem legal. A gente é que tem que assumir mais a responsabilidade por tudo que consumimos e produzimos. E lembrar que a internet ainda é jovem, que seu crescimento vem com dificuldades e que devemos continuar questionando sua estrutura. Acho que não é o caso de sair das redes sociais, mas de aprender a usá-las de forma mais consciente e intencional.
Eu pretendo continuar por aqui, nesse cantinho, buscando encontrar aquele equilíbrio entre profundidade, constância e necessidade. Treinando o pensamento crítico — muitas vezes sobre o óbvio —, compartilhando interesses que nos conectem e tentando entregar algo de qualidade e utilidade pra você.
🔗Conecta Links
◾ Sobre pressa, opiniões instantâneas e notas de 0 a 10, é mais um texto do Kalew seguindo a linha dos dois indicados acima. Nesse ele trata do imediatismo, do protagonismo e da superficialidade tão valorizados pelas redes sociais. E foi desse texto que veio a pergunta "Pra que eu devia produzir conteúdo, se há pessoas dizendo o mesmo que eu tenho vontade de dizer?". Se quiser consumir mais conteúdo por newsletters, assinar a do Kalew é indispensável.
◾ "As redes sociais não existem mais" é um excelente texto que explica como "as redes sociais migraram de espaços ingênuos de conexão entre usuários para um modelo de negócio tão complexo e lucrativo quanto a mídia tradicional" e reflete muito bem sobre todo esse clima apocalíptico em relação as redes sociais.
Por mais que você seja otimista em relação a internet, é importante entender toda essa lógica, até pra conseguir escapar dela. "O que chamamos hoje de rede social não passa de um curral comandado por algoritmos. Não há mais nenhuma intenção em informar, mas apenas um trabalho repetitivo que agrupa, controla e espalha informações sem levar em conta o usuário. Tudo isso é recheado com um sistema de propagandas cada vez mais incisivas que impedem que o usuário tenha uma experiência livre de ruído. Nossa atenção oscila entre a dúvida e o excesso de informação. Saímos das redes sociais piores do que entramos."
◾ A GQ norte-americana publica um extenso perfil do Jaron Lanier, um filósofo da computação e dos mais originais pensadores a respeito de conexão digital e realidade virtual. 'Lanier havia percebido precocemente que essas plataformas eram viciantes e até prejudiciais - que seus algoritmos faziam as pessoas se sentirem mal, dividiam-nas umas com as outras e, na verdade, mudavam quem eram.'
Lanier é um dos especialistas em destaque no documentário "O Dilema das Redes" e o autor de "Dez Argumentos para Você Deletar Agora Suas Redes Sociais". "Acho que as pessoas estão gastando mais tempo conectando-se com outras pessoas por chats de vídeo ou coisas assim do que recebendo passivamente coisas em um feed. Então realmente acho que as coisas melhoraram um pouco". Vindo do Lanier, há esperança.
◾ "Bem-vindo ao mundo dos 'digital gardens'. Um número cada vez maior de pessoas está criando sites individualizados e criativos que evitam a aparência única das mídias sociais. Essas reimaginações criativas de blogs silenciosamente invadiram os cantos mais nerds da internet. "Um movimento crescente de pessoas está usando os códigos de 'back-end' para criar sites que são mais artísticos e parecidos com colagens, no estilo do MySpace e do Tumblr – menos previsíveis e formatados do que o Facebook e o Twitter." (...) "Por meio dos digital gardens, as pessoas estão criando uma internet que tem menos a ver com conexões e feedback e mais com espaços silenciosos que elas podem chamar de seus." Mais uma tendência lá da gringa pra ficar de olho.
◾ Milícias digitais como o QAnon ameaçam o pacto civilizatório. Com esse texto/podcast, o Tecnocracia mostra como uma pessoa sã se deixa convencer por teorias da conspiração amalucadas da internet. Spoiler: Tem muito a ver com redes sociais e líderes populistas.
◾ No El País, tem "A História do QAnon", o perigoso movimento (classificado como "ameaça terrorista" pelo FBI) que se prepara para entrar no Congresso dos EUA e que já está atuando no Brasil.
◾ O último episódio do Tecnocracia "A raiva constante que sentimos na internet nos torna humanos piores", sobre a utilização da raiva como mobilizador, é não só esclarecedor e necessário, como de uma franqueza tocante. Curto demais o trabalho que o Guilherme Felitti faz com o podcast, é uma inspiração. E ter dois links do Tecnocracia na curadoria de hoje é até pouco.
◾ Não lembro como cheguei nos vídeos da Leka Lobão no instagram. Sei que curto demais os vídeos cheios de humor que ela grava por lá, questionando todo tipo de papo raso e descolado da realidade e outras amenidades como séries. Recentemente ela também começou o "SEM NOÇÃO - O Podcast" com episódios curtinhos, e o último, "O Dilema das redes", é um belo resumo e mais um reforço sobre a necessidade do documentário.
◾ Se você gosta de futebol, vale a pena seguir o Téo Benjamin no Twitter. O Téo faz análises (a maioria sobre o seu time, Flamengo mas também aborda outros) táticas e técnicas conectadas com toda a realidade que permeia não só o jogo mas toda indústria e ciência do esporte e fugindo das baboseiras que se vê na maioria dos programas esportivos populares. Suas análises em forma de tuites se transformaram em um livro, o Téo já foi convidado pra vários programas esportivos e esse é um bom exemplo de como um uso consciente das redes pode ser muito positivo e trazer muita coisa boa.
📚Conecta Livros
◾ Afirma Pereira, de Antonio Tabucchi.
Kit TAG Curadoria. 160 páginas.
Da série livros que apontam para o século passado que são extremamente necessários no momento presente. Escrito na década de 90, está ambientado em Portugal, nos anos prévios da Segunda Guerra Mundial. Curti muito a escrita do português Antonio Tabucchi. Prosa enxuta, fluída e profunda. É um romance que se passa em Lisboa, no final da década de 30, e mostra, por meio do cotidiano e das reflexões do jornalista Pereira, o estado de incerteza e angústia que paira sobre as pessoas. De um realismo chocante que aponta para os dias de hoje e nos faz perceber claramente como estamos vivendo tempos amargos e perigosos. E o final do livro é digno de nota.
◾ Notas sobre a pandemia: E breves lições para o mundo pós-coronavírus, de Yuval Harari.
Cia das Letras. 128 páginas.
Os dilemas da encruzilhada histórica provocada pela pandemia do novo coronavírus por Yuval Harari. Explorando temas como a disputa ideológica entre isolacionismo nacionalista e cooperação global, o risco da ascensão de estados totalitários na esteira das novas tecnologias de monitoramento em massa e os possíveis impactos do vírus na concepção contemporânea da morte, esse é na verdade um coletânea de artigos e entrevistas publicados em outros veículos como o Financial Times e o The Guardian. Apesar de não ter tanta coisa nova, é legal uma compilação com todos esses artigos e em português. E do Harari eu leio até lista de compras de supermercado.
Obrigado pelas demonstrações de que sentiram falta e por seguirem conectados. Até a próxima.
~ Edgar
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