Nesta edição:
I. Não surpreende, mas abala.
II. Militância virtual.
III. Racista Antirracista.
IV. Conecta Livros.
V. Conecta Links.
VI. Só mais uma dica.
Junho de 2020. Escrevo de Coritiba. Lugar que nunca pisei mas sempre quis conhecer. Jamais imaginei que fosse em plena pandemia e a uma onda de protestos. Depois de 16 horas revezando ao volante e mais algumas horas recuperando as energias, acordei no Paraná com o "pau quebrando".
Uma sequência de acontecimentos que vem de longe mas cada vez mais volumosos que não precisa ser antropólogo, economista ou estudioso político para perceber que se trata de momentos de extrema instabilidade, daqueles que precedem as grandes revoluções, como a história nos mostra.
E é aqui, cumprindo a prioridade que é o dever familiar, longe de casa, meio perdido e tentando me manter inteirado com o que acontece ao redor e controlando meu lado inflamado de querer opinar sobre tudo, que sai mais uma edição.
I. Não surpreende, mas abala.
Já não sei mais o que esperar em 2020. Por mais caótico e bizarro que sejam os acontecimentos, nada mais parece surpreender. E mesmo assim, tudo tem uma enorme capacidade de nos abalar.
Fugir das notícias, se isolar e se desconectar pode ajudar mas não para sempre. É meio que impossível passar muito tempo sem refletir, questionar e opinar sobre o momento e sobre onde tudo isso vai dar.
Não conheço ninguém que não esteja, em maior ou menor grau, abalado e preocupado com o momento e suas consequências para o futuro. Seja com relação a sua vida particular como em relação a vida em sociedade como conhecemos.
Porque sim, os eventos nos levam a crer que o futuro está em jogo. Vale lembrar que nossa agenda é muito pautada pela do noticiário. Sempre teve muita coisa trágica acontecendo por aí. Ainda assim, é notório o momento de extrema instabilidade em quase todo o mundo e a escalada fascista cada vez mais perto de casa. (e não que isso tenha surgido de uma hora para outra ou que seja uma novidade na história).
Essa escalada põe em risco todo um sistema político, econômico e social. O futuro de fato está em jogo. Uma ruptura se aproxima. É muita tensão de todos os lados, em vários países ao mesmo tempo. E sinceramente, espero que essa ruptura chegue. Não tem como continuar do jeito que está. Eu só não sei como ela virá.
Será através da guerra? Existe uma via totalmente pacífica? Saqueamentos e outros vandalismos são legítimos? Aderir a manifestações nas redes sociais ajuda ou só causa mais ruído? É muita informação, muita gente falando qual o melhor caminho, o que pode e o que não pode.
Essas encruzilhadas de situações incertas que não nos dizem exatamente para onde vamos ou o que veremos quando olharmos para trás são, talvez, mais uma prova de que o momento é daqueles históricos e de que uma ruptura está cada vez mais perto ao mesmo tempo que se mostra cada vez mais necessária.
Do mesmo jeito que me sinto inflamado por reagir contra toda essa normalização do absurdo, a tomar partido, a chegar a dizer que virei comunista em combate ao bolsonarismo, também sinto, muitas vezes, que estou apenas me deixando levar pelo hype, pela polarização, pela loucura das redes sociais.
Por mais que tente olhar para os lados e entender os diferentes caminhos possíveis, a incerteza só aumenta. O que não resta dúvidas é que a casa está em chamas e nós estamos dentro, escolher o sedutor caminho de ficar parado e calado não me parece mais uma opção.
E ainda que cada vez menos surpreso, mais abalado e reflexivo, me sinto tentado a me apegar ainda mais a mensagem de que é hora de abandonar a “sensação persistente de que “não sou bom o bastante para ser militante” e a de que “é preciso resistir, pressionar, ajudar, mobilizar, falar e se posicionar sem nenhum constrangimento por ser ou não letrado no assunto.”
II. Militância virtual
Quando as primeiras imagens de Minneapolis com prédios em chamas surgiram, fiz uma postagem invocando Djonga e o slogan “fogo nos racistas” (que em muitos lugares já não era mais apenas um slogan). Recebi mensagens de reprovação sobre como isso era extremista e como os atos de vandalismo eram muito erradas.
Poucos dias depois a bandeira do antifascismo memetizou e tomou conta dos feeds. Os protestos antirracistas escalaram e as manifestações virtuais seguiram o mesmo ritmo.
Aderi ao movimento #blackouttuesday para logo depois ler uma dezena de “threads” sobre como a manifestação mais esvaziava do que ajudava o movimento, que tive vontade de apagar a postagem.
Com a consciência de que não tenho lugar de fala em muitas discussões, refletindo sobre se não seria mais adequado ficar em silêncio, voltei a me questionar se meus posicionamentos eram legítimos e se de fato ajudavam em algo maior (lembrando que se posicionar vai muito além de uma simples postagem em rede social).
O Alex Castro escreveu brevemente sobre não ter como “banalizar a militância virtual” porque ela já nasce banalizada. E de que o perigo é sermos complacentes por não fazer nada enquanto nos parabenizamos por fazer alguma coisa. Não achei muitos argumentos para discordar o que só fez aumentar mais os questionamentos.
No fim das contas apelo para minha intuição, para o que o Edgar de hoje acredita ser o certo e para minha vontade de fazer o que acho que vale a pena. Pois no final acho que é disso que se trata, fazer o caminho valer a pena, ainda que ele próprio assim, como seu destino sejam incertos.
III. "Racista antirracista"
Mesmo diante desses questionamentos, nos últimos dias também indiquei alguns conteúdos (filmes, documentários, livros), que me ajudaram a entender questões como o racismo estrutural.
Logo depois vi o Emicida numa entrevista falando sobre como “a gente só aceita debater o racismo quando ele é pautado pelos Estados Unidos e de que o racismo no Brasil pode seguir matando a vontade.”
Bem da verdade, todos os conteúdos que recomendei eram sobre o cenário norte-americano. Em algum momento cheguei a pensar em escrever sobre as diferentes abordagens de Martin Luther King Jr e Malcolm X no combate a desigualdade racial. Além de parar pra pensar sobre como conheço ainda menos a questão racismo estrutural no complexo cenário brasileiro, refleti sobre meu não lugar de fala e na prioridade que é deixar espaço para as vozes que realmente importam no momento.
É importante se calar e ouvir. Mas como já dito, escolher o caminho de ficar parado e em silêncio também não vejo mais como uma opção. Costumo dizer que o simples fato de nascer branco numa sociedade racista já faz de mim um racista, quer queira eu ou não.
E na minha posição de racista antirracista (não é porque é meme que não é real), também posso contribuir. Aprendendo, me tornando cada vez mais consciente dos meus privilégios e do meu papel na discussão, entendendo a melhor forma de apoiar a ruptura das desigualdades econômicas, sociais, raciais que tanto se necessita.
Porque ela vem. Precisa vir. E precisa que traga as coisas para o lado certo. E quando se trata de racismo e fascismo, não é difícil enxergar qual é o lado certo.
A intenção nunca é em surfar na onda de nada. "Biscoitar" atrás de massagem nos sentimentos de insegurança, desconforto e culpa também não. Mas de boas intenções o inferno está cheio. O importante é manter o foco no que interessa e citando o Emicida mais uma vez: "Era pra esse país tá pegando fogo mesmo".
🔗Conecta Links
◾ Uma das autoras que mais tenho gostado de ler é a Aline Valek. Em sua última newsletter, "O Nome da Guerra", colocou em palavras e deu vazão a muito dos sentimentos sobre os últimos dias. "São tempos de morrer de falta de ar, causada por polícia ou covid. Sem ar, sem voz. Uma guerra que mata por sufocamento." "Não é guerra, é um déjà-vu. Está acontecendo há muito tempo, como se estivéssemos presos numa reprise. São sempre as mesmas pessoas morrendo. As pessoas de sempre no poder. A mesma política de extermínio, há gerações."
◾ O Valter Nascimento também soltou mais um lúcido texto, "Eu não posso respirar" - Sufocamento, pandemia e opressão, fazendo um paralelo entre a pandemia e a opressão que nos mata por sufocamento e o nosso direito de respirar. "A morte de George Floyd nos assusta pois é também a representação do nosso medo moderno mais recente — a incapacidade de respirar." "Se podemos tirar alguma lição disso tudo é que o horror da violência, o racismo, o fascismo e a opressão encontraram na pandemia um ponto em comum. Os renegados pelo Estado são incapazes de respirar o mesmo ar que as “pessoas de bem” há muito tempo. Não podem usar os mesmos espaços abertos (ao ar livre) e nem dizer a pleno pulmões o que desejam. A pandemia só aumentou o volume dos gritos. Democratizou o sufocamento e nos lembrou da importância do fôlego e da fala."
◾◾ Esse artigo do Kareem Abdul-Jabbar no LA Times também vai numa direção parecida: "O que você deve ver ao ver manifestantes negros na era de Trump e do coronavírus é que as pessoas estão sendo levadas ao limite, não porque querem bares e salões de beleza abertos, mas porque querem viver. Respirar. (...) O que eu quero ver não é uma corrida por julgamento, mas uma corrida por justiça."
◾ Em "Como as redes sociais tornaram a política quase impossível" o novo texto da newsletter "Cartas de Arlequim" usa conceitos e argumentos apresentados pelo Jaron Lanier no best-seller “Dez Argumentos Para Você Deletar Agora Suas Redes Sociais” no contexto da nossa relação com a política e as redes sociais. "É possível, na verdade, que seja um daqueles momentos históricos que recordaremos pelas próximas décadas e precisaremos de muito esforço para dimensionar. Mas esta sensação de hoje também é o convite mais preciso para que tomemos cuidado com o papel das redes no processo, para que este não seja um novo bumerangue."
◾ Recentemente joguei "Falso Espelho", livro da nova expoente da geração millennial Jia Tolentino, na lista de próximas leituras. Nessa entrevista, a autora avisa que textão nas redes sociais não basta, critica o excesso de opiniões e diz que uma manifestação online só é relevante quando leva a alguma ação: "A internet encoraja as pessoas a acreditarem que o discurso já é o desfecho".
◾ Esse trecho do stand-up do Michael Che, de 2016 viralizou por explicar de forma didática o problema do discurso "todas as vidas importam", no contexto das manifestações do #blacklivesmatters. O show completo está na Netflix e apesar de ainda não ter assistido, deve valer muito a pena. Tamborine, do Chris Rock e todos os shows do David Chapelle são outros stand-ups imperdíveis na Netflix onde os comediantes usam passagens de suas vidas para exporem verdades nuas e cruas ao mesmo tempo em que matam as pessoas de rir.
◾ "Ditadores" é um podcast original do Spotify que mergulha nas mentes e motivos por trás de alguns dos líderes mais sádicos do mundo. Cada ditador é analisado em episódios de duas partes com o primeiro dando uma ideia de sua ascensão ao poder, e o segundo descrevendo o impacto de sua queda. Já escutei os dois episódios sobre Josef Stalin e curti bastante. Vou começar os episódios sobre Mussolini que imagino seja bastante esclarecedor sobre a história do fascismo.
◾ Em "Conversa com Bial", em celebração aos 70 anos da televisão brasileira, o editor-chefe do Jornal Nacional William Bonner, divide sua visão dessa história sob o ponto de vista de quem está à frente do noticiário televisivo mais assistido do país. Em tempos onde o jornalismo e em especial a Globo é constantemente atacado, é interessante ouvir o ponto de vista de quem tá la dentro.
◾ Em meio a tantas citações sobre Martin, Malcolm, Mandela, teve bastante gente cobrando posicionamento sobre referências aqui no Brasil. Deixo aqui o perfil de pessoas (do meu círculo e convívio próximo ou não) que mais acompanho e servem de referência pra mim: a amiga Rafaela Braga e o amigo Ébano Machel, a conterrânea Kamilla Albino, os artistas Emicida, Mano Brown, Djonga e Babu Santana. A youtuber Nath Finanças, a Winnie Bueno da Winnieteca, o Ale Santos, o Raull Santiago, o Oga Mendonça. Com milhões, milhares ou centenas de seguidores, são todos inspirações em diferentes áreas e projetos e com muito a ensinar e compartilhar sobre a luta contra o racismo.
📚Conecta Livros
◾ Sobre a tirania, de Timothy Snyder.
Editora Cia das Letras. 168 páginas.
Recomendado na edição #27, esse é um livro curto e muito importante pro momento. O livro surgiu com base numa postagem do Facebook do autor logo após a vitória de Donald Trump nas eleições norte americanas. "Não somos mais sábios do que os europeus que viram a democracia dar lugar ao fascismo, ao nazismo ou ao comunismo no século XX. Nossa única vantagem é poder aprender com a experiência deles”. Do post nasceu a ideia para o livro onde Timothy Snyder conta 20 lições que deveríamos seguir para evitar que tempos sombrios de outras épocas voltem a tonal. É uma leitura rápida, direta ao ponto e com lições bem úteis e necessárias.
◾ Pequeno manual antirracista, de Djamila Ribeiro.
Editora Cia das Letras. 136 páginas.
Li o livro da Djalmila Ribeiro em uma sentada só, na casa de um amigo. É um livro sempre muito recomendado quando o assunto é a luta antirracista. É uma leitura bem direta e esclarecedora onde a autora, filósofa e ativista, trata de temas como atualidade do racismo, negritude, branquitude, violência racial, cultura, desejos e afetos. Em onze capítulos curtos e contundentes, a autora apresenta caminhos de reflexão para aqueles que queiram aprofundar sua percepção sobre discriminações racistas estruturais e assumir a responsabilidade pela transformação do estado das coisas. O livro é ainda uma boa fonte de referências pra quem deseja se aprofundar mais no assunto.
🎥 Só mais uma dica: 13ª Emenda
Apesar de retratar o cenário norte-americano, 13ª Emenda é premiado documentário é de extrema relevância pra quem quer entender do que se trata o racismo estrutural que muitos não conseguem compreender.
Há quem enxergue a discriminação racial como um problema de caráter, uma falha individual. Algo que as pessoas praticam, mas não deveriam praticar. A 13ª Emenda do título se refere à Emenda da Constituição Americana que aboliu a escravidão nos Estados Unidos. O documentário mostra de forma muito bem embasada, como o fim da escravidão nos Estados Unidos foi ao longo do tempo sendo substituído por outras formas de segregação, até culminar com a política do encarceramento em massa.
É um documentário que mostra que racismo não constitui um deslize eventual, mas um projeto voluntariamente perpetrado pelas classes dominantes geração após geração. Uma aula muito necessária sobre racismo estrutural.
O formato da última edição foi muito bem recebido. Obrigado a quem compartilhou nas redes e a quem deu feedbacks tanto por lá quanto por aqui. Tentei mesclar um pouco aquele formato com o habitual. E perdão se hoje tem mais erros que o de costume pois foi tudo de uma vez só.
Até a próxima.
~ Edgar
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