Nesta edição:
I. Todo dia o mesmo dia.
II. "Lá fora, a peste; aqui dentro, a loucura".
III. A arte existe porque a vida não basta.
IV. Conecta Links.
V. Conecta Livros.
E aí, como vocês estão? Por aqui sem novidades (levando em conta o fato de que estar mais uma vez cumprindo o calendário da news não seja novidade).
Sempre me fascina, (desde meu interesse tardio e ainda muito raso) a capacidade que peças literárias, cinematográficas, musicais, enfim, a capacidade que a arte, mesmo produzida muito tempo atrás tem de decodificar nosso cotidiano presente.
É interessante e as vezes assustadora as analogias que podem ser feitas.
I. Todo dia o mesmo dia
"Well, it´s groundhog day again" ~ Phil Connors
Se você acompanha memes já deve ter visto a frase acima adaptada e atualizada para os novos tempos: “Well, it´s quarentine day again.”
É que “Groundhog day” (O dia da marmota em inglês) ou “Feitiço do tempo”, como foi traduzido aqui no Brasil, é uma comédia existencial de 1993 que se tornou um meme e uma metáfora para o momento atual.
A premissa da história tem sido muito lembrada desde que importantes marcos temporais sumiram da nossa rotina com as medidas de isolamento social adotadas.
Se você tem discernimento e é privilegiado o suficiente pra se manter em quarentena, em algum momento deve ter se sentido como o protagonista interpretado pelo Bill Murray no filme.
Em “Feitiço do Tempo”, pra quem não viu ou não se lembra, o meteorologista de TV Phil Connors parece ter caído em um feitiço que o faz acordar todas as manhãs no Dia da Marmota — 2 de fevereiro.
Não importa o que ele faça para tentar mudar o dia e fazer o calendário avançar, nada dá certo. Todas as manhãs ele acorda na mesma cidadezinha, na mesma cama, no mesmo horário, para enfrentar o mesmo dia.
O arrogante e egocêntrico personagem parece aprisionado naquele dia até que aprenda sua lição. Antes disso, porém, Phil tenta tudo o que pode pensar para tirar proveito da situação e basicamente, trapaceia a vida.
Depois de tentar todos os atalhos possíveis para conseguir o que queria, Phil entra numa profunda depressão e atinge o fundo do poço.
Numa das principais falas do filme, ele pergunta ao seu companheiro de boliche: “O que você faria se estivesse preso em um lugar e todos os dias fossem exatamente iguais, e nada que você fizesse importasse?”
Seu amigo, que está um pouco bêbado, olha para ele e diz: “Isso resume tudo para mim”.
Por fim, Phil aceita seu destino de que ficará preso no mesmo dia pra sempre. É a partir daí que seu comportamento muda. Ele passa a conhecer todos na cidade, percebe quais problemas existem e usa seus “poderes” para tentar resolver.
Graças a nova dedicação, Phil também se destaca no seu trabalho, e o principal, depois de aprender que a melhor maneira de conseguir aprovação é não precisar dela, ele finalmente é notado por Rita, seu par romântico.
Não é a toa que a odisseia de Phil tenha se tornado uma grande parábola sobre o nosso tempo. Sem dias de escola, com o trabalho muitas vezes em home office e os tradicionais programas de fim de semana suspensos, nos perdemos no calendário e questionamos, até quando?
O pico do número de casos vai ser em 2 semanas, dizem os infectologistas na televisão. Com tanta gente desrespeitando as orientações, duas semanas se passam e eles dizem que vai ser daqui a quinze dias. E quinze dias depois, garantem que será em mais duas semanas.
Quanto tempo dura duas semanas nesses tempos de pandemia? O horizonte se move conforme vamos em direção a ele e a curva sobe até atingir um teto desconhecido.
Além do medo maior em relação a doença, temos a incerteza quanto ao futuro e mais essa deficiência temporal pra causar angústia e fadiga crônica.
Não está fácil.
Não estamos no meio de um filme, muito menos somos personagens de uma comédia romântica mas o final de Phil Connors em o “Feitiço do tempo” pode dar alguns bons spoilers.
O presunçoso e insolente protagonista repensa sua vida e procura viver um dia (sempre o mesmo) após o outro. Não há amanhã, não há chance de sucesso, não há chance de fracasso, há apenas o dia e o que pode ser feito com ele.
Assim, Phil experimenta a empatia, vive todo dia o mesmo dia fazendo o que precisa ser feito, escapa do Dia da Marmota e completa sua jornada do herói ao acordar no dia 3 de fevereiro como um sujeito melhor.
II. "Lá fora, a peste; aqui dentro, a loucura".
Viver como se todos os dias fossem iguais nesse isolamento é um privilégio. O dia da marmota é uma parábola pouco realista pra grande parte da população.
O impacto devastador da pandemia é sentido de forma mais intensa nas áreas densamente povoadas pela classe trabalhadora e entre as camadas mais pobres da sociedade, onde o distanciamento social é uma impossibilidade física e o desespero econômico torna a falta de renda uma ameaça à vida.
Enquanto isso a elite global, contrariando o discurso “estamos todos no mesmo barco” de algumas celebridades, busca retiros extravagantes para se isolar.
De iates em alto mar, passando por ilhas paradisíacas e chegando ao ponto da recusa de autoridades francesas em permitir o desembarque de dez pessoas de um jato particular britânico, que se destinariam a comemoração de um feriado numa casa de luxo em Cannes.
Não é difícil achar notícias relatando que as elites continuaram a socializar dentro de seus próprios círculos, muitas vezes a um custo humano devastador. Sem falar que, como era de se imaginar, está claro que quem possui mais posses parece aceder mais facilmente a testes para o novo coronavírus.
Pra falar exclusivamente de Brasil, que já é considerado o epicentro da pandemia hoje, ao somar isso tudo com a inaptidão política e o comportamento bizarro do nosso principal governante e de parte da população, fica difícil não se lembrar de uma parábola muito mais grotesca para o nosso momento.
“A máscara da morte escarlate” é um conto gótico de Edgar Allan Poe, publicado pela primeira vez em 1842. Se não me falha a memória, conheci o conto no final de 2015 em meio as notícias sobre os desmandos dos poderosos durante a epidemia do Zika vírus.
O conto é sobre um príncipe com o nome de Próspero, que se refugia com a classe dominante em sua abadia onde imagina não chegar uma epidemia mortal. Enquanto o príncipe e sua corte se divertem, o povo sofre e sucumbe.
“Havia muito tempo que a “Morte Escarlate” devastava todo o país. Jamais uma peste fora tão letal e tão terrível.
(…)
Mas o Príncipe Próspero era feliz, intrépido e sagaz. Quando os seus domínios minguaram à metade de almas vivas, convocou um milhar de amigos fortes e de corações alegres, escolhidos entre os cavalheiros e damas da sua corte. E, com eles, formou um refúgio recôndito em uma de suas abadias fortificadas. Tratava-se de uma vasta e magnífica construção, criação dele mesmo, o Príncipe, conforme seu gosto excêntrico e majestoso.
(…)
A abadia estava amplamente abastecida. Graças a tais cuidados, os cortesãos poderiam enfrentar o contágio. Que o exterior se arranjasse como pudesse. De sua feita, seria uma loucura afligir a alma com meditações sobre a peste. O príncipe havia fornido aquele refúgio com todos os meios prazerosos. Havia bufões, improvisadores, bailarinos, músicos, formosuras de todas as espécies. E havia, também, o vinho. Todas essas belas coisas havia no interior, além da segurança. Lá fora, disseminava-se a “Morte Escarlate”.”
A brilhante comparação entre o conto de Poe com o que experimentamos em tempo real é feita nesse alentado artigo da escritora e ensaísta Dirce Waltrick do Amarante, na Folha de S. Paulo: “O mais intrigante agora, é que no Brasil, talvez estejamos vivendo o relato de Poe na vida real. Na abadia do século 21, tal como no século 19, amplamente abastecida, o mundo externo que se arranjasse.”
E se a vida imita a arte, segue Dirce, é prudente conhecer o final da história de Edgar Allan Poe: mais cedo ou mais tarde todos se dão conta de que um estranho se infiltrou na festa.
É que no conto, depois do sexto mês de confinamento, quando a pestilência atinge o ápice do lado de fora da abadia, Próspero acha por bem oferecer um baile de máscaras “da magnificência mais extraordinária”.
É nessa festa que se passa boa parte da história e é através dela que o assustador intruso se apresenta dentro das fortificadas muralhas.
Dessa vez não vou dar ainda mais spoilers. Não é difícil achar algumas traduções do conto na internet.
“A máscara da morte escarlate” é uma precisa alegoria pois se trata de uma história sobre um líder soberbo e sem noção da realidade e sobre privilégios e classe, que contrasta o comportamento e o destino de ricos e pobres durante uma praga ainda mais letal que o coronavírus.
Com tudo que já foi dito e com o que observo em cada ida ao supermercado, passando por diferentes bairros e, independente de classe, a pergunta que me faço depois da releitura é: quem de nós é semelhante à figura fantasmagórica que vagueia a espalhar a doença?
E termino com a conclusão da Dirce: “Quando os olhos do nosso “príncipe Próspero” caírem sobre essa figura espectral, esperamos que não seja tarde demais.”
III. A arte existe porque a vida não basta
Um filme de décadas atrás e uma história com quase dois séculos de idade como interessantes alegorias sobre o presente. Apesar de parecer que não serve pra nada e dos ataques que sofre, a arte e a cultura são essenciais para nos manter vivos e sãos. Por isso, é um direito humano de primeira necessidade.
Se tem o privilégio e a oportunidade de apoiar e consumir, aproveite.
“A arte existe porque a vida não basta.” ~ Ferreira Gullar
🔗Conecta Links
◾ Bolsonaro, o encantador de ratos [Leitura, 3 min, em português]. Eu não conhecia "O Flautista de Hamelin". A Carolina Bataier além de apresentar a fábula, também faz uma significativa analogia do conto folclórico com o cotidiano presente. "Mas, certamente, a realidade é mais complexa que uma fábula milenar, e mesmo o caráter dos ratos é reflexo da nossa percepção do mundo. O rato, quando invade sua cozinha, está apenas tentando sobreviver, garantir alguma comida e abrigo. O animal age com ignorância, sem saber que seu instinto significa, para nós, comida furtada, fezes pela casa e risco de doenças." Mais um exemplo de antiga arte sendo usada para decodificar os tempos atuais.
◾ Conheça a mulher que sobreviveu ao coronavírus e a gripe espanhola. [Leitura, 3 min, em inglês]. Com 107 anos ela contraiu a gripe espanhola em 1918 e acaba de se recuperar da covid-19. “É notável. Isso é tudo o que posso dizer. É simplesmente inacreditável. Acho que talvez seja por causa da sua arte, que ela ainda está envolvida.”
◾ Case Além: o papel do conteúdo na pandemia [Leitura, 7 min, em português]. A Beatriz Guarezi da Bits trouxe um artigo interessante sobre o papel do conteúdo na pandemia. Através do case da Além, uma startup de viagens (um dos setores mais afetados pela crise), é possível tirar boas lições e se inspirar. Particularmente, já me fez até colocar algumas ideias pra funcionar.
◾ O que as estantes de livros de pessoas famosas revelam? [Leitura, 4 min, em inglês]. O link com o artigo sobre a estante dos jornalistas da TV foi o mais clicado da edição #45. Esse artigo da NYT traz uma versão com uns gringos famosos. “Em quarentena, as pessoas estão inadvertidamente expondo seus hábitos de leitura –embaraçosos, surpreendentes e impressionantes.” Tem a Cate Blanchett, príncipe Charles, Amy Poehler, Anna Wintour, Paul Rudd e outros.
◾ Coisas pra fazer enquanto salva a humanidade [site, no seu tempo, em inglês]. Pra quem tá entediado na quarentena, esse link pode ajudar. Matérias, indicações de filmes e vários dados de conhecimento inútil para manter o entretenimento em dia.
📚Conecta Livros
◾ Admirável mundo novo, de Aldous Huxley.
Editora Globo. 312 páginas.
Não sei dizer porque mas só consegui terminar esse livro na terceira tentativa. A primeira foi muito tempo atrás e a segunda ao final do último ano. Tava sem ler nada no kindle fazia algum tempo e pra não gastar comprando coisa nova, resolvi atacar o livro do Huxley pela terceira vez há algumas semanas. E valeu a insistência pois dessa vez a coisa fluiu. Escrito em 1932, além de ser um dos grandes clássicos distópicos, acho que é o mais original e, talvez, um dos livros mais proféticos do século XX.
◾ O filho de mil homens, de Valter Hugo Mãe.
Editora Globo. 224 páginas.
Esse é um livro sobre solidão e sobre a busca por pertencimento. Uma história sensível que se desenvolve bem até o desfecho final onde a história de todos os personagens se entrelaçam. VHM escreve de forma muito poética e cheio de lirismo, escolhendo muito bem cada palavra. Talvez pela alta expectativa devido a todos os comentários positivos em torno da obra, e não sendo um estilo que tinha o costume de ler, acabei não curtido tanto. Longe de não ter gostado mas acho que esperava mais da experiência. Pretendo dar chance a outras obras do autor.
Espero que esteja seguindo firme por aí. E se quiser trocar uma ideia, desabafar, criticar (e especialmente elogiar) ou me indicar conteúdos bacanas, só responder esse e-mail :)
Até a próxima.
~ Edgar Oliveira.
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