Fatos não se importam com opiniões. CP#45
"A quantidade de energia necessária para refutar uma bobagem é de uma ordem de magnitude maior que para produzi-la."
Nesta edição:
I. As telas venceram.
II. Grupos de Whatsapp como campos de batalha.
III. Ter opinião não é crime. Mas também não é argumento.
IV. Conecta Links.
V. Conecta Livros.
E aí, como vocês estão?
Apesar das incertezas não pararem de crescer, por aqui consegui dar uma estabilizada e manter a serenidade. Me afastar das tretas nos grupos de Whatsapp foi fundamental, ainda que não dê pra ignorar e deixar de se irritar com tudo que rola por lá. Como vocês fazem?
"A quantidade de energia necessária para refutar uma bobagem é de uma ordem de magnitude maior que para produzi-la." ~ Alberto Brandolini.
I. As telas venceram
O livro Fahrenheit 451, escrito em 1953, é mais uma das distopias que descrevem um futuro de opressão e terror. Na realidade imaginada por Ray Bradbury os bombeiros desempenham uma nova função: em lugar de apagar incêndios, sua tarefa é apagar a história. Os bombeiros ateiam fogo. Em livros.
Normalmente, a obra de Bradbury — que tem muitos pontos de contato com os clássicos Admirável Mundo Novo e 1984— é considerado um protesto contra a censura.
O autor, porém, disse em diversas entrevistas que seu objetivo principal era chamar a atenção para a disfuncional sociedade consumidora da mídia televisiva — e outras mídias modernas — que fazia com que as pessoas se interessassem cada vez menos pelo mundo das ideias.
Em certa passagem do livro, uma personagem comenta: “Desde 1990, já fizemos e vencemos duas guerras atômicas!” — o que nos leva a deduzir que o futuro imaginado pelo autor, corresponde mais ou menos ao nosso presente.
Não sei se o Bradbury imaginou como o debate, já existente na década de 50, sobre os impactos que os dispositivos eletrônicos têm em nossas vidas, se acentuaria tanto nos tempos atuais.
Em conversas de bares (sdds) ou em discussões entre especialistas, passando sempre pela preocupação de pais com a exposição de suas crianças, a discussão sobre como a tecnologia afasta as pessoas de relações reais e porque devemos passar menos tempo na frente de telas era constante até algumas semanas atrás.
O distanciamento social provocado por uma pandemia, no entanto, trouxe uma nova perspectiva que parece ter encerrado esse debate. As telas venceram — é o que argumenta Nellie Bowles.
Seja no home office, no contato com os familiares isolados, no entretenimento, não temos tido muita escolha a não ser nos render as telas. De fato, o que seria de nós, privilegiados, sem elas e sem a milagrosa tecnologia que é a internet.
Alguns especialistas já apontam que, talvez, parte do movimento que limita o uso de telas estivesse focado na direção errada. “Agora, forçados a ficar sozinhos, mas querendo ficar juntos, muitos estão descobrindo o que deve ser o tempo da tela”. O foco deveria ser em aprender e conectar. Em humanizar.
São muitos os casos que apontam nessa direção. Iniciativas que antes ajudavam pessoas a passar menos tempo nas redes sociais e mais tempo socializando no mundo real agora se adaptam a nova realidade. (Os pais dos pequenos que o digam).
A rendição sobre o tempo de tela, no entanto, dificulta o retorno as tarefas da vida offline. Se tornou ainda mais complicado fazer com que nossa atenção se desligue dessas “black mirrors”.
É interessante acompanhar essas novas perspectivas, ainda que seja cedo pra saber se o debate foi realmente encerrado e se a aparente vitória das telas seria algo bom ou ruim.
Seguimos com a certeza de que uma realidade onde bombeiros queimam livros não podem ser nada a mais do que terror e opressão. Já as telas, afinal, podem ser responsáveis por ajudar a colocar a disfuncional sociedade nos eixos de novo.
II. Grupos de Whatsapp como campos de batalha.
Com o isolamento e o aumento do tempo de tela, o caldeirão das redes sociais ferve com "notícias", "debates", memes e tretas das mais acaloradas. E o caldeirão dos grupos de Whatsapp (que não deixa de ser uma dessas redes) é onde acontece grande parte dessas tretas.
O impeachment de Dilma Roussef e as últimas eleições presidenciais, em meio a excessiva polarização e a novas tecnologias de monitoramento e análise de dados, foram eventos que elevaram a guerra da informação para outro patamar — pra ficar só no território nacional.
Como bem escreveu o Rodrigo Ghedin, a quarentena do coronavírus será mais uma prova de fogo para os grupos de Whataspp. O aplicativo de mensagens foi e segue sendo um dos principais campos de batalha nessa guerra.
A pandemia pela qual atravessamos, se já não bastasse todo caos e terror gerado, também serve para difundir ainda mais por esse campo, o vírus da ignorância, das teorias conspiratórias, das notícias falsas, da negação da ciência.
De uma perspectiva pessoal, uma das coisas que mais me irritaram e contribuíram para meu estresse, ansiedade e confusão mental no início desse isolamento foram as discussões travadas nesses grupos.
Na verdade no único grupo que de fato interajo constantemente. Um grupo de amigos de longa data, onde a diversidade de conteúdo e entretenimento gerado não se acha em lugar nenhum da internet (ainda vou dar um jeito de ganhar dinheiro com esse grupo).
No meio desse conteúdo, é claro, sempre estiveram as discussões sobre assuntos relevantes e/ou polêmicos do debate público. E uma coisa que sempre me incomoda e, infelizmente, chega a me revoltar nessas discussões é a confusão que alguns desses amigos, e tantas outras pessoas inteligentes, fazem na distinção de peso entre opinião, argumento e fato.
Se os debates sobre o tempo de tela cessaram, as discussões sobre a necessidade do isolamento total ou não, por exemplo, cresce a medida que o colapso econômico fica cada vez mais nítido.
O debate é válido, claro. O problema é quando num debate sobre uma pandemia causada por um vírus, os argumentos, de um biólogo, com pós-doutorado na USP e em Yale, especializado em vírus e epidemias, ganham o mesmo peso que a opinião de um bacharel em direito, especialista em marketing digital e comentador político em programa de rádio.
III. Ter opinião não é crime. Mas também não é argumento.
A frase “essa é a minha opinião e você tem que respeitar” sempre aparece como forma de justificar e legitimar um posicionamento e encerrar um assunto. Em defesa do sagrado direito à opinião muitos usam essa frase como mantra para sustentar suas posições e assim colocá-las num pedestal inatacável.
A liberdade de expressão garante a todos o direito de manifestar livremente suas ideias, pensamentos e opiniões.
O problema é quando a opinião de uma pessoa A com nenhum conhecimento de um assunto X tem o mesmo peso da opinião de uma pessoa B que estudou e se especializou por anos nesse mesmo assunto X.
Essas duas opiniões são muitas vezes colocadas apenas como “pontos de vista” diferentes. Só que não. No caso acima, enquanto as duas pessoas poderiam opinar sobre o assunto X, apenas uma teria condições de argumentar e conduzir um debate saudável e frutífero sobre o assunto.
Opinião é diferente de argumento.
Opinão é sua visão pessoal sobre determinado assunto. Argumento precisa ter consistência lógica e respaldo das evidências da realidade, no mínimo.
Opiniões, em geral, surgem de fatores menos conscientes; como gostos e preferências pessoais, experiências de vida e informações soltas que pegamos por aí.
Já argumentos são baseados em premissas válidas que ajudam a construir uma conclusão. Os argumentos surgem de análise, reflexão crítica, raciocínio lógico e informações e dados a respeito do assunto.
Quando nossas opiniões são levadas a um debate devem se transformar em argumentos com premissas melhores que o mantra citado lá em cima.
Opinião não se discute, argumento sim.
Pior que isso, porém, é quando as pessoas querem contrariar os fatos. Os fatos não se importam com opiniões.
Você tem o direito de opinar sobre a Terra ser plana e até de manifestar a crença nessa sandice. Nesse caso você só iria passar vergonha.
Só que quando se trata de um debate público que interfere na comunidade a sua volta, contrariar os fatos, usar “argumentos” pautados em opiniões de pessoas sem conhecimentos no assunto ou em notícias falsas é muita irresponsabilidade, no mínimo.
Essa irresponsabilidade prejudica a sociedade e a liberdade de expressão não te dá esse direito.
Os debates aqui no meu grupo de amigos podem não prejudicar ou melhorar a sociedade, mas podem melhorar ou piorar a visão de mundo de cada um. Apontar essas confusões é importante e necessário.
Agora eu só tomo cuidado com a energia gasta, a saúde mental e os argumentos.
Até porque ninguém merece um caga regras num divertido grupo de zap. 🙂
🔗Conecta Links
◾ Por que você não consegue ganhar aquela discussão na internet? O autor David McRaney escreveu sobre o efeito backfire e citou vários estudos que mostram como as pessoas se dispõem a completamente ignorar provas científicas de que elas estão erradas. São informações que valem manter em mente quando você resolver discutir na internet.
◾ Esse desconforto que você está sentindo é luto. [Leitura, 6 min, em inglês]. Uma entrevista reconfortante sobre o período que estamos vivendo. Estamos passando por uma espécie de luto coletivo pelo fim da vida que tínhamos. "A perda da normalidade, o medo da crise econômica, a perda de conexão. Isso tudo está nos impactando, e nós estamos de luto. Coletivamente." Precisamos reaprender a viver com isso, buscando superar o desconforto, ressignificar as coisas e focar no que podemos controlar.
◾ Por que lemos histórias de pragas? [Leitura, 8 min, em inglês]. A literatura das pestes não é apenas sobre doenças. Essas histórias mostram como os humanos lidam com as mudanças interiores a medida que o mundo exterior muda, como as coisas poderiam ser sempre piores e como somos capazes de superar adversidades. Belíssimo texto.
◾ A história do hoddie (casaco com capuz) [Vídeo, 12 min, em inglês]. Um amigo compartilhou essa matéria sobre os americanos negros que demonstram preocupação por serem estigmatizados ao usarem máscaras contra o coronavírus. A matéria logo me remeteu a esse sensacional vídeo do Idea Channel sobre a origem e história do hoddie, uma peça de roupa básica que se tornou ao mesmo tempo um símbolo da injustiça racial e um ícone da cultura de rua e do capitalismo.
◾ A estante dos jornalistas da TV [Leitura, 7 min, em português]. Um dos assuntos mais quentes da quarentena são as bibliotecas dos repórteres/comentaristas de TV. O G1 pediu dicas de livros para alguns deles.
📚Conecta Livros
◾ Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração, de Viktor E. Frankl.
Editora Vozes. 140 páginas.
Viktor Frankl foi um psicoterapeuta que passou anos nos campos de concentração nazistas. Ele usa sua experiência desumana pra falar sobre como se mantinha motivado e o que levava as pessoas a desistirem da vida e afins. Durante suas provações, ele pode colocar em prática em si mesmo e observar em outros suas ideias sobre dificuldades existenciais e o sentido da vida. Conseguiu sobreviver aos campos, saiu e fundou a logoterapia, para ajudar pessoas com problemas existenciais. Leitura obrigatória, especialmente para tempos difíceis.
◾ Médico de homens e de almas, de Taylor Caldwell.
Editora Record. 704 páginas.
A história romanceada de São Lucas, um dos mais importantes personagens da igreja cristã primitiva. A autora pesquisou a vida e as obras de Lucas durante décadas para apresentar uma obra rica em detalhes históricos e de narrativa emocionante. Esse livro foi presente da minha mãe no fim do ano e eu passei o verão todo lendo as suas 700 páginas. Religioso ou não, se você gosta de ler sobre Roma Antiga, sobre os primeiros anos da era cristã e romances históricos em geral, vale muito a pena dar uma chance.
Que você faça parte da minoria deste mundo, e esteja passando por essa quarentena de forma privilegiada e protegida.
Se cuide, até a próxima e se precisar de ajuda, dá um grito.
~ Edgar
Recebeu essa newsletter de algum amigo? Siga agora mesmo!
Comentários? Basta responder a este e-mail.