Cultive seu próprio jardim. CP#44
"Há décadas em que nada acontece e há semanas em que décadas acontecem."
Nesta edição:
I. Cultive o jardim que pode tocar.
II. Conecta Links.
III. Conecta Livros.
Como vai você nesse período de quarentena? Espero que esteja bem e se cuidando.
Por aqui tá tudo certo. Agora. As últimas semanas foram pesadas e foi difícil manter a sanidade vendo tanta coisa desmoronar de uma hora pra outra.
O negócio é focar no que podemos controlar e estruturar um programa rigoroso para si mesmo e para nova rotina. É o que demorei mas comecei a fazer. A edição de hoje é só pra colocar a cabeça no lugar e voltar a programação normal.
I. Cultive o jardim que pode tocar.
O momento é especial. Incerto e turbulento. Estava com a nova edição dessa news pronta há quase duas semanas mas resolvi esperar. A edição ignorava quase totalmente o assunto Coronavírus. Pensava ser melhor assim.
Discursos irresponsáveis e avalanche de informações desencontradas. Muita incerteza e apreensão. Pânico pra alguns e nada demais acontecendo para outros. O cenário já era bem caótico e colocar mais lenha na fogueira seria pior.
Comecei o ano com uma leitura que era basicamente um tratado sobre a morte. E antes do carnaval chegar já estava presente em dois velórios. O tema da news seria esse: morte.
Escrevi sobre nossa própria mortalidade. Mas na intenção de trazer justamente mais leveza e liberdade. Peguei lições aprendidas com Montaigne e outros sábios ainda mais antigos, escrevi, preparei os links e deixei tudo pronto.
Falar sobre morte já é considerado mórbido, a primeira vista, em situações normais. Nesse atual clima apocalíptico, talvez o tema trouxesse o oposto do que gostaria.
Fiquei sem saber o que preparar e enviar. Seguia querendo ignorar o assunto COVID-19. Mas é impossível. Não tem como presenciar a evolução da situação e ficar alheio e ignorar o assunto. Todos temos um papel a desempenhar nessa nova realidade que se apresenta.
Como produtor dessa newsletter, como incentivador da leitura, como curadoria de conteúdo, quero seguir fazendo o que sempre fiz nesse espaço e com cada vez mais responsabilidade: refletir, compartilhar informação correta, conteúdo capaz de agregar de alguma forma e incentivar ainda mais leitura.
Mas tava complicado. Em uma semana sofri com as altas doses de ansiedade e estresse. Qualquer tentativa de leitura ou de escrever aqui, qualquer coisa que exigisse concentração, virava completa confusão mental. Acompanhei muitos relatos parecidos.
Ainda acabei me cobrando demais por não conseguir enviar uma nova edição da newsletter, o que só piorou as coisas.
Achei conforto nas palavras da Aline Valek, que escreveu em seu último e-mail:
"Não sou especialista, não sou autoridade. (…) Sou tomada pela necessidade de recolher minha voz, com o sentimento de que não tenho nada a contribuir, de que já há ruído demais, de que outras pessoas já disseram muito melhor o que vale a pena ser dito.”
Resolvi adotar o silêncio. Me voltar pra dentro e segurar a onda. Deixar tudo para os especialistas, os grandes jornais, os profissionais de saúde, para as pessoas com mais autoridade e influência, para o governo (?).
Só que também é uma boa hora de questionar. Questionar nosso modelo de sociedade. Questionar e confrontar os terraplanistas, negacionistas e pseudocientistas que insistem em atentar contra a Ciência. Questionar o governo para que aja de acordo com ela.
Questionar aqueles que não pensam no coletivo, nos mais vulneráveis e nos menos privilegiados. Questionar e problematizar o individualismo, o capitalismo. Questionar e adequar a nossa linguagem e comunicação.
Questionar o mundo na tentativa de criar um melhor do que esse.
Uma coisa de cada vez, porém. Querer mudar o mundo pra melhor é importante. E nobre. Antes, no entanto, se faz necessário a mudança e a manutenção do seu mundo particular. Por mais coach que essa frase possa soar.
Mais do que nunca, é hora de cultivar o próprio jardim.
"Nada adianta querer mudar o mundo se o mundo a sua volta, sua vida, sua rotina, sua família, seus amigos… está tudo desmoronando. Por mais que parece heroico querer atacar problemas em escala global, o maior impacto sempre será feito à sua volta. Por isso, é essencial focar no jardim em que você pode tocar. ~ Paulo Ribeiro"
É hora de executar ações positivas nesse sentido. Focadas sobre aquilo que temos controle. Naquelas poucas coisas que importam, ignorando todo o resto. É hora de criar um novo plano, uma nova rotina, novos hábitos e se adaptar.
Falar é sempre mais fácil. Não sou autoridade e não sou especialista. Não tenho pretensão de dizer o que deve ser feito nem pra qual direção devemos seguir. Mas ao menos esse é um momento que podemos usar o tempo de quarentena (pra quem de fato tem esse tempo) pra começar a colocar práticas sempre muito aconselháveis (mas que sempre jogamos pra depois), em execução.
Termino deixando algumas que costumam me ajudar bastante.
Aproveite pra ler muito. De preferência aquele clássico que tá há tempo parado na estante. Também pode ser uma boa dar atenção aqueles 264832 artigos salvos acumulados na nuvem;
Escreva. Com papel e caneta. É uma boa hora pra começar ou retomar um journal.
Exercite-se. Tá rolando um movimento bacana do pessoal compartilhando seus treinamentos em casa.
Comece um projeto pessoal. Tire aquela ideia da gaveta. Sem pretensões, só pra passar o tempo, pra se divertir. Você pode se surpreender.
Aproveite para começar a contabilidade de alguma coisa que queira monitorar ou tornar hábito. Suas horas de sono. Quantas flexões faz por dia. Quantas páginas lê, quantos copos de água tomou. O que pode ser medido pode ser melhorado.
Volta pra aquele curso online inacabado. Ou procura algum dos muitos que estão sendo disponibilizados gratuitos pela rede.
Tá difícil pra todo mundo e as incertezas são muitas. Ainda temos poucas informações sobre esse novo vírus e, principalmente as consequências dessa crise. O debate entre as medidas de isolamento total e preocupação econômica é importante.
Em meio a isso tudo, cultive seu jardim, siga as recomendações sanitárias, se distraia, se cuide e não dê atenção ao limítrofe do presidente.
🔗Conecta Links
◾ Não se preocupe com a morte. [Leitura, 8 min, em portugês]
Nossa única certeza é a morte. Nos distanciamos dessa ideia com o noticiário que transforma a morte em números e estatísticas. E com a desenfreada rotina cotidiana que nos consome por completo e serve como desculpa para não pensarmos no assunto. Pois é um dado sobre o ser humano: evitamos pensar na morte a qualquer custo. É considerado mórbido. Muitas filosofias, porém, ensinam o contrário. (Esse é o texto que mencionei lá em cima.)
◾ Yuval Noah Harari: O mundo depois do coronavírus [Leitura, 7 min, em inglês]
Um importante e crucial artigo do Financial Times sobre a crise. Harari aponta entre tantas coisas, o risco de políticos usarem a pandemia para concentrar mais poder e aumentar os mecanismos de vigilância da população. “A epidemia de coronavírus é, portanto, um grande teste de cidadania. Nos próximos dias, cada um de nós deve optar por confiar em dados científicos e especialistas em saúde em detrimento de teorias infundadas da conspiração e de políticos que servem a si mesmos. Se não conseguirmos fazer a escolha certa, poderemos perder a liberdade, pensando que essa é a única maneira de proteger nossa saúde.”
◾ Sobre a realidade em que vivemos [Leitura, 3 min, em português]
Texto interessante sobre como quando duas dimensões de realidade (cultural ou objetiva; individual ou compartilhada) se cruzam, acabam formando diferentes jeitos de enxergar, interpretar e, consequentemente, viver a realidade. "O desafio, especialmente agora, com tanta informação, desinformação e alarmismo, é garantir que cada uma dessas realidades cumpra o seu respectivo papel."
◾ Provocast - Sidarta Ribeiro [Áudio, 35 min, em português]
Os podcasts estão salvando a infinita lavação de louça por aqui. Esse é um papo de fato provocador com o neurocientista Sidarta Ribeiro, um dos maiores nomes do país quando o assunto é a pesquisa em torno do uso de substâncias psicoativas (em especial a cannabis) e a ciência em geral. Prato cheio pra quem quer escutar de filosofia, sonhos, maconha, ciência e a bad trip da política nacional.
◾ O Grande Vazio [Leitura e imagens, 5 min, em inglês]
Um lindo especial com fotos de diversas cidades do mundo em meio ao isolamento imposto pelo coronavírus. "Essas imagens são assombradas e assustadoras como fotos de filmes sobre pragas e apocalipse, mas, de certa forma, elas são esperançosas."
📚 Conecta Livros
◾ A incrível viagem de Shackleton, de Alfred Lansing.
Editora Sextante. 352 páginas.
Esse livro entra numa das categorias que mais gosto de ler: Narrativas de não ficção sobre sagas incríveis demais pra ser verdade, mas que são. Baseado nos notáveis diários dos homens dessa expedição, Alfred Lansing consegue criar uma das maiores narrativas de resistência do espírito humano sobre uma das maiores odisseias de sobrevivência que já tive conhecimento. O comportamento de Shackleton e seus homens nessa jornada é prova viva do lema de sua família: Fortitudine Vincimus (Pela Resistência Vencemos). Um bom lema pros tempos atuais.
◾ Nascido do Crime, de Trevor Noah.
Editora Verus. 320 páginas.
Excelente pra se distrair e dar risada ao mesmo tempo em que recebe uma emocionante, brutal e educativa aula de vida. Trevor Noah viveu a infância e início de vida adulta no período final do apartheid como um "colored" (filho de branco com preto), o que era considerado CRIME na época. Livro impossível de largar, em que ele relata como foi crescer imerso numa cultura de pobreza, insegurança e criminalidade ao mesmo tempo em que enfrentava o dilema de não ser preto o suficiente pra ser considerado preto, nem branco o suficiente pra ser considerado branco. (Por enquanto, a única versão em português é a da TAG)
É isso quarenteners. Em tempos de seguir a recomendação de isolamento social, reforço ainda mais o incentivo de interagirmos por aqui. Como sempre, estamos do lado de cá sempre que quiserem trocar uma ideia.
Se cuidem e até a próxima.
~ Edgar Oliveira.
Recebeu essa newsletter de algum amigo? Siga agora mesmo!
Comentários? Basta responder a este e-mail.