A antibiblioteca e o paradoxo do conhecimento. CP#38
Reconhecer o que sabe não é arrogância.
Nesta edição:
I. Ilusão de controle: é bom mas é ruim.
II. O problema do pensamento de grupo e da ignorância individual.
III. A antibiblioteca, o epistemocrata e o paradoxo do conhecimento.
IV. Conecta links.
V. Conecta livros.
Na última edição foi citado um ditado popular que, infelizmente, tenho usado mais do que gostaria. E dependendo da situação ou da forma que citamos, pode ser até interpretado como ofensa.
Mas a sabedoria popular tem muito seu valor e não ensina que a ignorância é uma benção a toa.
I. Ilusão de controle: é bom mas é ruim.
“Juro a vocês, senhores, que ter muita consciência é uma doença; uma verdadeira e perfeita doença”.” ~ Fiódor Dostoiévski em Memórias do Subsolo
Quando a internet começou a ficar popular, confesso que a imaginei como uma fonte infinita de informação, uma espécie de biblioteca universal online, com livre acesso por qualquer indivíduo, capaz de fazer do mundo um lugar com bem menos diferenças, mentiras e ignorância.
Ainda me surpreende testemunhar que o que aconteceu foi justamente o oposto disso.
Tudo bem que o que imaginei foi uma espécie de utopia. Mas mesmo que pudéssemos de fato zerar o jogo do conhecimento, talvez isso não nos fizesse tão bem. É que a ignorância realmente pode ser uma benção.
Uma pessoa ignorante é alguém que não tem contato com uma certa informação que está disponível no ambiente. Pra ficar no popular, o ignorante é diferente do burro. Ele apenas não tem conhecimento sobre a existência de determinada informação e isso pode colocá-lo num estado de pouco estresse (benção) em várias situações.
Quando se é ignorante frente a um assunto ou evento, você não se incomoda com a ocorrência desse tal evento pois nem sabe que ele ocorreu.
Ao deletar as redes sociais por exemplo, você pode ficar alienado sobre todas as discussões importantes que rolam por lá. Assim como pode se ver livre das outras tantas discussões cheias de ódio, intolerância e polêmicas infrutíferas que povoam aquele ambiente.
Por mais que esteja fora das redes sociais, as discussões e atualizações seguem ocorrendo normalmente. E apesar de alheio (ignorante) a todas elas, estaria ao menos, bem menos estressado, ansioso e amargurado (uma benção).
O viés da “ilusão de controle” — que mostra o quanto nos iludimos em ter influência sobre algum evento externo — traz uma luz mais científica pra conversa.
A Ilusão de Controle consiste em acreditar na própria capacidade de afetar eventos futuros, ainda que não se possua qualquer controle sobre eles.
Os pesquisadores Amos Tversky, Daniel Kahneman e David Hirshelifer afirmam que este viés pode ter origem nas necessidades humanas de conforto, segurança, proteção da autoestima e bem-estar emocional.
Sabe o botão de pedestre pro semáforo ficar vermelho e você atravessar a rua com segurança? Ele é um “botão placebo”, que não funciona. Segundo cientistas, é só uma ilusão ao estilo Matrix. Sua função é apenas fazer com que os pedestres acreditem que têm alguma influência sobre a sinalização. Assim, conforme se comprovou, suportam melhor a espera para atravessarem.
Entre vários estudos sobre a ilusão de controle, um deles realizado lá pela década de 70 concluiu que pessoas com traços de depressão eram menos afetadas por esse problema. Ou seja, pessoas deprimidas tinham uma percepção melhor do ambiente. Elas se mostraram mais realistas, mais críticas, porém, eram menos felizes (mais deprimidas) do que pessoas com mais ilusão de controle e menos percepção da realidade.
Somos muito menores do que achamos ser e temos menos poder do que acreditamos sobre as coisas à nossa volta. A ilusão de controle que nos torna ignorante a esse fato, nos faz mais feliz.
Se você já leu Viktor Frankl ou Primo Levi, vai lembrar que a ilusão de que é possível influenciar um pouco o próprio destino permitiu que esses prisioneiros sobrevivessem de novo a cada dia.
Então, sim, a ignorância pode ser uma benção ao nos deixar nesse estado de graça, alheio a problemas e situações estressantes e iludidos sobre a real influência que temos sobre nosso destino.
Mas (sempre tem um mas), é bom não confundir essa ilusão com uma completa mentira. Afinal, nossas atitudes afetam o ambiente menos do que acreditamos mas não deixam de afetar.
Nós como seres humanos, precisamos dessa benção que é a ignorância mas, claro, sem exagerar na dose.
II. O problema do pensamento de grupo e da ignorância individual.
Yuval N. Harari, que em “21 lições para o século 21” nos perturba as ideias ao examinar uma série de problemas e desenvolvimentos importantes da era atual, ao mesmo tempo pede calma no final do livro afirmando que somos incapazes de processar tudo que acontece nos dia de hoje. Ninguém é.
Nos séculos recentes, segundo Harari, o pensamento liberal depositou uma confiança imensa no indivíduo racional. Ele descrevia indivíduos humanos como agentes racionais independentes, e fez dessas criaturas míticas a base da sociedade moderna.
No entanto, para o autor, é um erro depositar tanta confiança no indivíduo racional. Harari dedica um capítulo inteiro a discutir o mito do indivíduo racional e o mito da própria individualidade.
É no meio dessa discussão que ele apresenta mais uma ilusão que não deixa de ser também uma benção em alguns casos. É a Ilusão do Conhecimento. Que ocorre quando tratamos o conhecimento do grupo como nosso e pensamos sabermos muito quando individualmente sabemos muito pouco. E isso também não é necessariamente ruim.
Nossa confiança no pensamento de grupo nos fez senhores do mundo, e a ilusão do conhecimento nos permite atravessar a vida sem cairmos em um esforço impossível para compreender tudo por nós mesmos.
Nenhum indivíduo sabe tudo o que é preciso para construir uma catedral, uma bomba atômica ou uma aeronave. O que deu ao Homo Sapiens uma vantagem em relação a todos os outros animais e nos deixou com o papel de protagonista do planeta não foi nossa racionalidade individual, mas nossa incomparável capacidade de pensar juntos em grandes grupos.
De uma perspectiva evolutiva, confiar no conhecimento de outros funcionou extremamente bem para o Homo sapiens.
Mas, assim como outros traços humanos que faziam sentido em Eras passadas mas causam problemas na Era moderna, a ilusão do conhecimento tem suas desvantagens. O mundo está ficando cada vez mais complexo, e as pessoas não se dão conta de quão ignorantes são.
Indivíduos humanos, constrangedoramente, pouco sabem sobre o mundo. À medida que a história avança, sabem cada vez menos.
É improvável, mostra Harari, que simplesmente oferecer às pessoas mais informações melhore a situação. Cientistas esperam poder dissipar concepções equivocadas com educação científica. Especialistas esperam influir na opinião pública em questões mais complexas apresentando ao público fatos precisos e relatórios de especialistas.
Essas esperanças baseiam-se em uma compreensão equivocada de como os humanos efetivamente pensam. A maior parte de nossas opiniões é formada por pensamento comunitário e não em racionalidade individual. Adotamos essas opiniões por lealdade ao grupo.
Bombardear pessoas com fatos e expor sua ignorância individual provavelmente será um tiro pela culatra, escreveu Harari. Talvez, como biblioteca online universal foi o que aconteceu com essa tal de internet.
A coisa fica ainda mais feia quando Harari aborda no mesmo capítulo o fato de que o problema do pensamento de grupo e da ignorância individual não envolve apenas “pessoas comuns” mas também presidentes e CEOs, evidenciando como o poder funciona como um buraco negro distorcendo tudo a sua volta (inclusive a verdade) e o dilema em que esses líderes ficam presos.
"É muito difícil descobrir a verdade quando você está governando o mundo. Você simplesmente está ocupado demais. A maioria dos líderes políticos e grandes empresários estão eternamente atarefados. Se você quiser se aprofundar em qualquer assunto, vai precisar de muito tempo e, principalmente, do privilégio de poder desperdiçar tempo.
Se permanecerem no centro do poder, terão uma visão extremamente distorcida da vida. Se se aventurarem nas margens, desperdiçarão seu precioso tempo."
Por sinal, reforço a recomendação da edição anterior. “21 Lições” é uma obra essencial para entender o mundo em que estamos inseridos. Cada novo evento que toma conta do debate nacional ou internacional me faz lembrar de alguma parte do livro.
Harari aponta ainda que todo esse problema só vai piorar. Nas próximas décadas o mundo será ainda mais complexo do que é hoje. Consequentemente, indivíduos humanos — sejam peões ou reis — saberão ainda menos sobre as engenhocas tecnológicas, as correntes econômicas e as dinâmicas políticas que dão forma ao mundo.
Como observou Sócrates há mais de 2 mil anos, o melhor que podemos fazer nessas condições é reconhecer nossa própria ignorância individual.
III. A antibiblioteca, o epistemocrata e o paradoxo do conhecimento.
A ilusão de controle mostra que somos menores e menos importante do que acreditamos, na e que quanto mais sabemos mais descobrimos a quantidade de coisas que não sabemos.
Reconhecer nossa ignorância individual e toda essa parte que não sabemos é também uma forma de conhecimento. Sócrates é Sócrates porque reconheceu que só sabia que nada sabia.
A forma como aprendi a tratar meus livros — principalmente os não lidos — vem de uma menção em A Lógica do Cisne Negro e é uma boa analogia pra esse paradoxo do conhecimento.
A primeira parte do livro se chama A Antibiblioteca de Umberto Eco. Já falei um pouco sobre ela em outras edições mas pra explicar com mais clareza do que seria capaz, dessa vez vou redigir o trecho completo:
“O escritor Umberto Eco pertence àquela classe restrita de acadêmicos que são enciclopédicos, perceptivos e nada entediantes.
Ele é dono de uma vasta biblioteca pessoal (que contém cerca de 30 mil livros) e divide os visitantes em duas categorias: os que reagem com: “Uau! Signore professore dottore Eco, que biblioteca o senhor tem! Quantos desses livros o senhor já leu?”, e os outros — uma minoria muito pequena — , que entendem que uma biblioteca particular não é um apêndice para elevar o próprio ego, e sim uma ferramenta de pesquisa.
Livros lidos são muito menos valiosos que os não lidos. A biblioteca deve conter tanto das coisas que você não sabe quanto seus recursos financeiros, taxas hipotecárias e o atualmente restrito mercado de imóveis lhe permitam colocar nela.
Você acumulará mais conhecimento e mais livros à medida que for envelhecendo, e o número crescente de livros não lidos nas prateleiras olhará para você ameaçadoramente. Na verdade, quanto mais você souber, maiores serão as pilhas de livros não lidos. Vamos chamar essa coleção de livros não lidos de antibiblioteca.”
A antibiblioteca de Eco, pra mim, é a melhor definição pro paradoxo “quanto mais conhecimento mais ignorância”: “…quanto mais você souber, maiores serão as pilhas de livros não lidos.”
Minha pilha de livros não lidos funciona como um importante lembrete de tudo que ainda não sei. O Nassim Taleb, no mesmo livro, fala sobre o epistemocrata: um intelectual humilde que reconhece o que não sabe e não faz questão de fingir saber de tudo. Esse é um bom personagem pra se inspirar.
Mas também não precisamos esquecer do outro lado. E minha enorme pilha de livros lidos? Enquanto a inteligência não é saber de tudo, tampouco é pensar não saber de nada. Pra continuar na analogia dos livros, minha prateleira cheia de leituras realizadas representa tudo que já sei e focar apenas na pilha dos não lidos pode me levar pro outro extremo do efeito Dunning-Kruger: a síndrome do impostor.
Inteligência pra mim, portanto, é reconhecer o que você sabe e aceitar o que não sabe. Sem arrogância, sem falsa modéstia e sem falsa humildade.
Olhando pelo outro lado a equação quanto mais me percebo ignorante mais me reconheço inteligente.
E talvez isso tudo tenha sido só pra dizer que sou inteligente pra caramba. Mas cada vez mais burro e incomodado. Pra mostrar que quanto mais percebo a complexidade das coisas, mais tapado e atormentado me sinto. De certa forma, então, não seria melhor abraçar essa ignorância e se manter num estado de alienação como uma forma de tolerarmos mais o mundo em que vivemos?
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Planeta Estratégia. 240 páginas.
Já indiquei diversas vezes o Startup da Real aqui e se você ainda não o acompanha, antes tarde do que mais tarde. No Twitter, no Instagram, no Medium ou nas participações em diversos podcasts, o Star, como já conhecido, é uma das vozes mais lúcidas e sensatas das redes sociais. Sempre com o pensamento crítico e muito embasamento científico, o perfil traz um importante e necessário choque de realidade no meio desse oceano de discursos motivacionais irresponsáveis. Esse é seu livro que acabou de entrar em pré venda depois de uma baita ação de divulgação feita no Twitter. Como li a edição anterior, posso atestar que já é leitura obrigatória.
◾ O Animal Social, de David Brooks.
Editora Objetiva. 496 páginas.
Baseado em uma extensa pesquisa sobre o comportamento humano e se utilizando de uma narrativa ficcional da história de um casal (do nascimento a velhice), David Brooks mostra como o contexto social, da rotina e rituais diários, serve para moldar nossos pensamentos, sentimentos e crenças e como o terreno das emoções, das intuições, dos desejos, das predisposições genéticas, dos traços de personalidade e das normas sociais são os responsáveis pelas decisões mais importantes da nossa vida.
É a segunda vez que o envio fica pra sexta. Tem sido melhor pra mim assim. E por aí? Não quero atrapalhar seu #sextou, mas também nem ficar esquecido por causa dele. 😎
Até a próxima.
~ Edgar Oliveira.
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