Conectando Pontos #37
CP#37 - A culpa é toda nossa
As últimas semanas foram complicadas. Se já não bastasse a normalização de absurdos diários que aumenta a cada dia, passei uma semana de cama e mais uma bem meia bomba graças a um mosquito desgraçado.
Pra completar, me deixei levar pelo FOMO e parti pra devorar a série que é o novo drama britânico do momento. Years and Years retrata uma sociedade caótica e distópica mas que reflete muito bem essa realidade que temos experimentado.
Me desculpa mas tenho que dividir com vocês um pouco da angústia que senti ao assistir, porque apesar de dura é uma série necessária. Mas antes vamos começar com essa oração aqui…
I. Uma velha justificativa para toda nova burrice do mundo
“O maior problema do mundo é que os ignorantes e os fanáticos estão muito seguros de si mesmos e as pessoas inteligentes estão cheias de dúvidas”.
As palavras acima do também britânico filósofo Bertrand Russel nos remete a um estudo da psicologia que depois de ser eleito o estudo acadêmico mais inútil no início dos anos 2000, parece que passou a ser uma das principais justificativas para toda estupidez do mundo.
O Efeito Dunning-Kruger aponta a distância entre nossa confiança no conhecimento e o que realmente sabemos. É o efeito que parece explicar muito do nosso atual momento já que graças a ele, indivíduos com pouco conhecimento sobre um assunto acreditam saber mais do que especialistas e outros mais bem preparados.
De forma bem resumida o Efeito Dunning-Kruger demonstra nossa incapacidade de compreender os limites do próprio conhecimento.
A ignorância é uma benção, já diz o ditado popular. Quanto menos sabemos, menos noção temos do quão não sabemos. É por isso que a ignorância em geral cria mais confiança do que o conhecimento e o excesso dessa confiança é mais perigoso e nocivo do que a falta dela.
O Efeito Dunning-Kruger pode explicar parte dessa crise de confiança com os especialistas e o porque de governos mundo afora acreditarem que o investimento em pesquisa e desenvolvimento, por exemplo, não é mais tão necessário.
A nova série da HBO é angustiante porque por ingenuidade, ignorância ou mesmo desonestidade, cada vez mais pessoas reforçam esse efeito e essa crise.
II. Years and Years: Dura mas necessária num mundo cada vez mais sombrio
Com doses de futurismo e distopia a lá Black Mirror, dramas familiares interessantes que remetem a This is Us e uma trama política com que de House of Cards, o novo drama da HBO pinta um caótico futuro imaginado mas que por ser bem plausível nos deixa mais angustiado do que meramente entretido.
E esse futuro imaginado é bem próximo. Cada episódio avança apenas alguns anos enquanto acompanhamos uma família inglesa no desenrolar de conflitos domésticos gerados pelos avanços da tecnologia e do extremismo político, pela crise de refugiados, pela confusão do Brexit e por tensões como o acentuamento de um possível conflito nuclear entre a China e os Estados Unidos.
De forma secundária, corre a trama sobre a ascensão de uma líder populista e extremista (Vivienne Rook) ao poder, que apesar de secundária, joga a política como tema central da série.
Logo no início do primeiro episódio (acho que não vai ser spoiler mas fica aqui o alerta) temos o seguinte diálogo quando um personagem é incentivado a ter filhos no momento em que, com o sobrinho recém nascido no colo, assisti a um noticiário na TV do hospital:
— Não sei se poderia por um filho nesse mundo.
— Que reconfortante. Obrigada.
— É sério. É como aquela tal de Rook falou. Tudo ia bem até uns anos atrás, antes de 2008. Lembram? Achávamos política um assunto chato.
— Bons tempos.
— E agora, me preocupo com tudo. Nem sei em que pensar primeiro. Nem é o governo, são os bancos. Eles me apavoram. E não só eles. As empresas, as marcas, as corporações que nos tratam como algorítimos enquanto envenenam o ar, a temperatura, a chuva. Nem vou falar do EI. E agora temos os Estados Unidos. Nunca achei que fosse ter medo deles, mas temos fake news, falsos fatos, nem sei mais o que é verdade. Em que tipo de mundo vivemos? Se está tão ruim agora, como vai ser pra você? (para o sobrinho no colo).
A partir daí a série avança alguns anos mas o que posso dizer sem mais spoilers alert é que a série caminha para um futuro próximo bem factível partindo desse real e obscuro presente que temos agora.
Um presente onde, puxado por teorias conspiratórias como Terra plana, cresce a propagação de discursos realmente perigosos como o da anti-vacina, o da negação dos fatos e da ciência em geral.
Sem entrar no mérito da qualidade e até de parcialidade, a série é angustiante ao mostrar o que podemos ter que enfrentar mas também pode servir como reflexão ao mostrar que caminhos não seguir. E toda reflexão é pouca em momentos em que o obscurantismo parece ser a tônica.
A ideia aqui também não é contribuir para um quadro de histeria coletiva e de completo pessimismo. A própria série tem suas pitadas de otimismo e esperança. Mas tá na cara que tem muita coisa preocupante e sombria acontecendo sim. E apesar de um produto de entretenimento, ao assistir a série a gente parece tomar aquele beliscão que nos lembra dessa realidade. Uma realidade que no caso parece descrita na trama de forma mais fiel do que gostaríamos.
Uma realidade onde o Clube Dunning-Kruger angaria cada vez mais membros — sem que esses membros percebam que fazem parte do Clube.
Como bem definiu o John Cleese na imagem lá do início: “Pessoas estúpidas não tem ideia do quão estúpidas são”.
“Você vê, se você é muito, muito estúpido, como você pode perceber que você é muito, muito estúpido? Você teria que ser relativamente inteligente para perceber o quão estúpido você é … [Saber] como você é bom em algo requer exatamente as mesmas habilidades que faz para ser bom nessa coisa em primeiro lugar. O que significa — e isso é terrivelmente engraçado — que, se você não é absolutamente bom em alguma coisa, então você não tem exatamente as habilidades que precisa saber que você não é absolutamente bom nisso.”
III. A culpa é nossa, afinal, também fazemos parte do Clube
A primeira regra do Clube Dunning-Kruger é que você não sabe que está no Clube Dunning-Kruger.
Ninguém tá livre dessa armadilha. Fazemos parte do clube em vários assuntos e áreas da vida. Todo mundo acaba se achando mais acima da média do que realmente é, afinal. O estudo do Dunning e do Kruger demonstrou isso.
Só pra tentar ilustrar um pouco, tem um estudo que diz que apenas 8% dos brasileiros estão enquadrados no nível mais alto de alfabetismo. É provável que você lendo isso aqui se coloque dentro desses 8%. Mas esse é um número alarmante e acho que deveríamos nos perguntar mais onde de fato estamos nessa estatística.
Somos péssimos para identificar o que não sabemos, e piores ainda para aceitar que nossa percepção pode estar errada.
As vezes acho que eu mesmo não estou fora da estatística dos analfabetos funcionais. Estou achando que entendo tudo claramente, quando na verdade minha percepção está totalmente comprometida. Na real, todo mundo tem sua espécie de Terra Plana.
Adotar uma postura menos rígida e evitar certezas absolutas nos deixa livres para abraçar outras visões conforme novas informações e novos conhecimentos vamos adquirindo. Jamais estaremos livres dessa cegueira, mas com um pouco de cuidado podemos reduzir os danos causados por nossa ignorância. Como já vimos, é melhor ter menos certezas do que excesso de confiança
Ao mesmo tempo, porém, mais do que nunca precisamos aprender a criticar e apontar erros num momento em que certas questões muito bem resolvidas pela ciência tem voltado a tona graças a essa crise de confiança nos especialistas e autoridades científicas. A ciência, os professores, os órgãos de pesquisa tem sido cada vez mais descreditados e isso precisa ser combatido.
Voltando pra série e cortando pro último episódio, temos um importante discurso da matriarca da família Lyons que, pra resumir, é uma explicação sobre porque ela acredita que toda a situação do mundo (naquele momento, pra lá de 2030) é culpa “nossa”.
Faz sentido. O Clube Dunning-Kruger precisa ser melhor fiscalizado. Erros de pensamento como a falácia da ignorância e o viés da superioridade ilusória precisam ser reconhecidos e destacados. É natural discordar e debater sobre certas ideias, posicionamentos e teorias mas certas questões precisam de um basta mais incisivo como, brincadeiras a parte, se discute nesse episódio do Braincast. (Existem formas mais adequadas de se fazer isso mas dependendo do caso a CMV é bem útil).
Precisamos ter menos certezas ao mesmo tempo em que combatemos a descrença em certezas comprovadas pela ciência.
São tempos realmente confusos.
Em um outro momento de Years and Years, o mesmo personagem do diálogo no hospital lança o seguinte questionamento:
“Parece que a inteligência está regredindo. Estamos dando ré. (...) A raça humana está ficando mais burra bem na nossa frente. (…) Acontece em todo lugar. Parece que fomos longe demais. Imaginamos demais. Enviamos sondas ao espaço, chegamos ao limite do sistema solar. Criamos o Colisor de Hádrons e a internet. Pintamos grandes quadros, compusemos grandes canções e então…bum! Tudo o que tínhamos…nós estouramos. E tudo está desmoronando. Nosso cérebro está regredindo. Não podemos fazer nada.”
Será que não podemos fazer nada? As mudanças na história não ocorrem de uma hora pra outra e absortos em fazer nossas tarefas cotidianas não notamos o mundo mudando seu percurso de maneira irreversível — quando notamos, já está tudo nos livros de História e é tarde demais para fazermos alguma coisa.
Com mais perguntas do que respostas é nessa confusão toda que minha porção idealista se pergunta cada vez mais onde construir pontes, onde construir muros e como fazer isso.
O que me diz?
Mesmo com cada vez menos respostas e mais confuso do que nunca, alguém pode sentir uma boa dose de provocação nisso aí em cima e nos links e recomendações aqui embaixo, então, compartilhe, encaminhe e passe pra frente ;)
Conecta Links
O Boa Noite Internet trouxe esse conto do Andy Weir pro formato de áudio e me gerou um efeito mind blowing de um jeito positivo, daqueles que mais conforta do que angustia. São só 10 minutos de áudio, vai lá que não é só de reflexões e imaginação sobre um futuro sombrio que precisamos.
“O sucesso da educação na Estônia se baseia em três pilares. A educação é valorizada pela sociedade, o acesso é universal e gratuito e há ampla autonomia (de professores e escolas).”
Um paralelo entre a corrida espacial e o mundo que a gente vive hoje. "(...) a busca pelo conhecimento, o fruto proibido da árvore, a curiosidade humana, a cooperação das nações, a expansão do bem-estar da humanidade, tudo isso são coisas que não podem ser negligenciadas. Deixar isso de lado, por maior que seja a tensão política, é abrir mão do futuro."
Se você já acha ruim o Facebook saber tudo sobre seus hábitos de consumo, suas opiniões e seus gostos, se prepare pois ele quer saber tudo sobre seus pensamentos também. A empresa anunciou que está financiando um projeto com voluntários humanos — e o futuro imaginado em Y&Y fica cada vez perto.
Um fazendeiro chinês e a sabedoria do não saber
Se quiser me encontrar em outras redes, fique a vontade :)
Conecta Livros
Você já deve ter percebido que não tenho enviado mais os e-mails mensais das “Recomendações de Leitura” com tudo que li no mês. Mas sigo fazendo isso basicamente lá no instagram @conectandopontos, então, se preferir pode acompanhar por lá também.
(Clique nas imagens para mais informações sobre os livros)
Se "Sapiens" explica de onde viemos e como chegamos até aqui e "Homo Deus" mostra onde podemos parar, esse terceiro livro do Harari aborda os principais dilemas do presente e os caminhos que podemos trilhar ou evitar. Não chega a ser um Sapiens (na verdade é uma espécie de resumo das duas primeiras obras que parece encomendada mais para fins comerciais) mas que não deixa de jogar muita luz importante nos principais debates do mundo atual. E com o selo Harari de qualidade para falar sobre a extensa história da humanidade de forma fluída, capaz de atingir qualquer leitor.
Em tempos de descrença na ciência, essa crônica esclarecedora narra o primeiro esforço científico verdadeiramente internacional - a busca para, no século XVIII, se observar o trânsito de Vênus e através disso, medir o sistema solar. Em meio a guerras e desentendimentos políticos globais, dificuldades de deslocamentos da época e outras dezenas de riscos, o livro narra a epopeia das diversas nações e seus cientistas para superar tudo isso e conquistar um grande passo que viria impulsionar toda a ciência no mundo.
Para assistir
Documentário: Privacidade Hackeada
Já vi muitas recomendações sobre esse filme e vou engrossar o coro. O documentário mostra os bastidores do escândalo da Cambridge Analytica, que envolveu o Facebook e as últimas eleições americanas. Assistimos assustados quão suscetíveis somos a manipulação graças aos dados pessoais que muitas vezes fornecemos sem questionamentos e, a capacidade que, em posse desses dados, governos e corporações tem de manipular com toda estrutura da sociedade. Um conteúdo também angustiante mas que se faz necessário para entendermos muito do que vem acontecendo nos dias de hoje.
Ainda não consegui colocar a rotina em ordem, por isso essa edição saiu num dia e horário diferente. Terminei hoje e não queria esperar até a próxima semana pra enviar. As próximas voltam a ser na quarta pela manhã. Ou não. :)
Até a próxima.
~ Edgar
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