Conectando Pontos #33
CP#33 - Thoreau, Taleb e a arte de caminhar sem rumo
"No meu tempo era diferente." Todo mundo em qualquer época já deve ter escutado isso dos mais antigos, pelo menos uma vez. O tempo passa e as coisas mudam, é claro.
As últimas gerações devem estar cansadas de escutar que "o mundo mudou", já que essas mudanças acontecem num ritmo cada vez mais acelerado. Tenho certeza que você já ouviu, leu ou assistiu algo sobre estarmos vivendo um momento histórico sem precedentes onde já não conseguimos mais acompanhar a evolução com que as coisas acontecem.
Mas será que hoje é tudo diferente mesmo? O mundo mudou tanto assim?
I - Os dilemas modernos são mais antigos do que pensamos
Sim, o mundo mudou bastante e seguirá mudando. Só que muito dos nossos problemas existenciais e da sociedade atual que achamos que são novos, na verdade são bem mais antigos. A forma como estamos guiando a sociedade, com indivíduos cada vez mais sobrecarregados e afastados dos elementos que são vitais para a natureza humana, por exemplo, não é uma discussão dos tempos modernos.
"Por que essa pressa desesperada de ter sucesso e por que essas empreitadas desesperadas? Se a pessoa não acompanha o ritmo de seus companheiros, talvez seja por estar ouvindo outro tambor. Deixem que entre no ritmo da música que ela está ouvindo, seja ela regular ou esparsa." - H.D. Thoreau
A citação acima foi retirada de "Walden", livro que acabei de ler recentemente e que me impressionou por mostrar que os conflitos que nos deparamos nos dias de hoje já eram discutidos em 1854.
Esse foi o ano em que “Walden” traduzido aqui como “A Vida nos Bosques”, foi publicado. É a obra mais popular de Henry David Thoreau, um pensador muito à frente de seu tempo e considerado um influente filósofo americano, muito conhecido por seu conceito de Desobediência Civil, que influenciou grandes nomes como Tolstói, Gandhi e Martin Luther King.
Walden é onde Thoreau apresenta sua proposta e sua declaração de independência pessoal através de uma experiência social. O autor manifesta seus ideais e compartilha suas reflexões levantadas nos 2 anos em que se isolou numa casa na floresta, as margens do lago Walden, vivendo sozinho e suprindo todas as necessidades por conta própria.
“Fui para os bosques porque pretendia viver deliberadamente, defrontar-me apenas com os fatos essenciais da vida, e ver se podia aprender o que tinha a me ensinar, em vez de descobrir à hora da morte que não tinha vivido.”
Mesmo publicado há tanto tempo, as questões que Thoreau levanta sobre os problemas enfrentados pela sociedade na época podem ser considerados atuais até os dias de hoje, e selecionei alguns trechos do livro que me chamaram a atenção para isso:
Sobre trabalho e as necessidades básicas do ser humano:
"A maioria dos homens, mesmo neste país comparativamente livre, através da própria ignorância e do engano, está tão envolvida com preocupações factícias e atividades desnecessariamente árduas que não colherá os melhores frutos da vida. Seus dedos, da excessiva labuta, estão grossos e trêmulos demais para tanto. Na verdade, o homem trabalhador não tem lazer suficiente para uma integridade genuína no dia a dia; ele não pode se dar ao luxo de manter as relações mais viris com os homens; seu trabalho ficaria depreciado no mercado. Ele não tem tempo para ser nada além de uma máquina"
"A massa dos homens leva uma vida de desespero calado. O que se chama resignação é a desesperança crônica. Você sai da cidade desesperada e encontra o interior desesperado e tem de se consolar com a bravura das martas e dos ratos-almiscarados. Existe um desespero estereotipado e inconsciente escondido até mesmo por baixo dos chamados jogos e divertimentos da humanidade. Não há nenhuma diversão nisso pois a diversão só vem depois do dever. Mas é uma característica da sabedoria não fazer coisas desesperadas."
Sobre uma vida de luxo e supérfulos versus uma vida mais simples e sábia:
"Mas os homens trabalham à sombra de um engano. A melhor parte do homem logo é incorporada à terra como adubo. Por um destino enganador, que geralmente chamamos de necessidade, eles se dedicam, como está dito em um velho livro, a amealhar tesouros que a traça e a ferrugem corroerão e os ladrões violarão e roubarão. É uma vida de tolo, como eles descobrirão quando chegarem ao fim, se não antes."
"A maioria dos luxos e muitos dos chamados confortos da vida não apenas não são indispensáveis como são, com efeito, obstáculos à elevação da humanidade. Com relação ao luxo e conforto, o sábio sempre viveu uma vida mais simples e frugal que o pobre."
"(...) Depois de obter essas coisas que são necessárias à vida, existe outra alternativa além de obter supérfulos; e essa alternativa é aventurar-se na vida agora, começando sua folga na labuta mais humilde."
Sobre a futilidade das notícias e o excesso de conteúdo:
"(...) Se você já entendeu o princípio, que importância têm miríades de casos e aplicações? Para um filósofo, qualquer notícia, como se diz, é mero boato, e quem as edita e quem as lê são todos como velhas senhoras durante o chá. No entanto, não são poucos os leitores ávidos justamente por esses boatos."
Se vivemos no século dezenove por que não usufruir as vantagens que nos oferece? Por que seria provinciana nossa vida? Se vamos ler jornais, por que não deixar de lado os boatos de Boston e adquirir logo os melhores jornais do mundo?"
Thoreau como sempre fez, também nos convida a viver de forma menos desesperada e mais integrada a natureza:
"A simplicidade e a nudez da vida do homem das eras primitivas implicam essa vantagem, ao menos, de deixá-lo ser ainda um hóspede temporário da natureza. Depois de recuperado com alimento e sono, ele contempla novamente sua jornada. Vivia, na verdade, em uma tenda neste mundo, e estava sempre percorrendo os vales ou atravessando as planícies, ou escalando o topo das montanhas. Mas vejam só, os homens se tornaram ferramentas de suas próprias ferramentas."
"Passemos um dia deliberadamente como a natureza, e não nos deixemos afastar do caminho por qualquer casca de noz ou asa de mosquito encontrada nos trilhos. Levantemos cedo, em jejum, ou façamos o desejum, delicadamente e sem qualquer perturbação; com companhia ou sem, deixemos que os sinos toquem e as crianças chorem - decididos a fazer aquele dia".
Vivemos no século XXI, diferente de Thoreau, e apesar de gostar do paralelo que ele faz com um tipo de vida mais selvagem e primitiva, não quero te incentivar a ir morar no meio do mato, até porque não é simplesmente isso que ele prega. Também não pretendo levantar qualquer conclusão sobre esses assuntos. Só queria mesmo compartilhar e estimular as reflexões que essa leitura me propiciou.
Thoreau era o retrato perfeito de um ser humano tentando manter sua alma em tempos caóticos e nesses tempos modernos e ainda mais caóticos, podemos aprender muito com ele.
Como gostei bastante de Walden (apesar de ter partes muito detalhistas e chatas) fui buscar outros títulos do autor quando encontrei um ensaio interessante sobre o ato de caminhar, onde Thoreau segue nos convidando a compreender o homem como parte da natureza , e não como um membro da sociedade.
II - Aprendendo a "arte de caminhar" com o saunterer e o flaneur
Thoreau era também um grande adepto da arte de andar a pé, escrevendo vários ensaios sobre suas vantagens biológicas, psíquicas e sociais.
Foi num desses ensaios, “Caminhando”, que cheguei a figura do "saunterer", definido assim por Thoreau:
"Em todo o decurso da minha vida só encontrei uma ou duas pessoas que compreendiam a arte de andar, isto é, de dar passeios a pé — que tinham o gênio, por assim dizer, do “sauntering”, palavra esplendidamente derivada de “pessoas vadias que erravam pelo país, na Idade Média, e pediam esmola sob o pretexto de irem à la Sainte Terre” à Terra Santa, até as crianças exclamarem “Lá vai um Sainte-Terrei `, um “Saunterer”, um da Terra Santa. Os que nunca vão à Terra Santa nas suas peregrinações, como pretendem, são, em verdade, meros vadios e vagabundos; mas os que lá vão ter são “saunterers”, no bom sentido que tenho em vista. É certo que alguns derivariam a palavra de sans terce, sem terra ou pátria, o que, portanto, no bom sentido, significará — não tendo pátria determinada, mas igualmente tendo sua Terra Santa em toda parte. Pois este é o segredo do vitorioso “sauntering”.
Para Thoreau não era possível conservar a saúde e o espírito sem passar no mínimo 4 horas por dia "sauntering" pelas matas, colinas e campos, absolutamente isento de todas as obrigações mundanas.
E assim ele segue sua linha nos estimulando para uma vida de mais contato com o ar livre esmiuçando os benefícios de uma boa e longa caminhada sem um destino específico e em contato com a vida selvagem.
"Que será que às vezes tanto nos dificulta determinar o destino a dar aos nossos passos? Creio na existência de um magnetismo sutil na natureza o qual, se cedermos inconscientemente, nos levará ao caminho acertado."
"Pois, sou dos que creem na influência do clima sobre o homem - como algo existente no ar das montanhas que nutre o espírito e inspira. O homem não se desenvolverá intelectualmente a maiores perfeições na mesma proporção que o faz fisicamente, sob tais influências?"
Toda essa figura do saunterer e essa ideia de caminhar explorando a natureza sem um destino específico, me lembrou um outro personagem conhecido por fazer do ato de caminhar não ter sentido algum e ao mesmo tempo ter todos os sentidos: o flaneur, palavra de origem francesa usada para definir um típico saunterer moderno. O saunterer das cidades e da vida urbana.
E seguindo conectando os pontos, ao pensar no flaneur, lembrei de um filósofo mais contemporâneo que Thoreau, e que apresenta ideias para que possamos justamente caminhar pela vida se aproveitando de toda a incerteza e aleatoriedade que a cerca.
Nassim N. Taleb é esse filósofo moderno, e todo seu trabalho é voltado para compreensão dos riscos e das incertezas, nos ensinando a se beneficiar do acaso e a lidar com fatores aleatórios sem cair na ilusão de que conseguimos prever o futuro e seus eventos imponderáveis.
E o método usado por Taleb para expor suas ideias, assim como a atitude ideal para descrever o que ele pretende com sua obra, é justamente o do flaneur. Do homem que caminha pelas ruas de uma cidade ou de um lugarejo sem meta definida, aberto ao que o acaso pode lhe dar, capturando as oportunidades que surgem.
As recentes leituras de Thoreau, as ideias de Taleb e outras reflexões e questionamentos sobre minha vida nesse caótico tempo moderno me levou a escrever o texto "Você não precisa saber onde quer chegar".
Tanto pra mostrar que na real quase ninguém sabe pra onde está indo. Como para mostrar que caminhar por aí "sem rumo", como um flanador racional como diz Taleb, se desesperando menos e vivendo de forma deliberadamente mais integrado com o mundo a sua volta como pregava Thoreau, pode ser uma saída para muitos dos "antigos problemas modernos" que enfrentamos, tipo aqueles de se sentir "perdido na vida" ou de precisar definir um plano pra "chegar lá".
III - Os planos não são nada. Planejamento é tudo.
Thoreau e Taleb me mostraram que caminhar sem rumo - literalmente e metaforicamente - tem lá suas vantagens.
Como é impossível prever o futuro e como nunca fui bom em responder aquelas perguntas do tipo, "onde você se imagina daqui a 10 anos?", prefiro não mexer muito com essas coisas de "grandes planos de vida", ainda que reconheça ser importante esse tipo de exercício e a definição de um norte como guia.
Planos e metas tem muito valor, e em certos contextos, são indispensáveis.
Você não consegue chegar a Marte sem um plano de longo prazo, por exemplo. Ou construir um arranha céu sem um bom planejamento, nem tocar um negócio sem metas e objetivos claros. E mesmo que fora de casos como esse, ainda há valor no processo de planejamento, mesmo que o plano final não seja usado. Acho que é um pouco do que Dwight D Eisenhower quis dizer com:
“Os planos não são nada. O planejamento é tudo.
Enxergo esse planejamento como minha rotina diária, meu sistema com as atividades que devo concluir consistentemente e pacientemente para construir os recursos que me ajudarão a perceber e conseguir aproveitar mais oportunidades. E esse planejamento nem sempre está certo ou nem sempre é cumprido, como é o caso por aqui nesse momento.
Planejar e definir metas para levar o time de futebol que você treina a final, é uma coisa. Definir um plano de longo prazo para alcançar seus sonhos é uma parte muito mais abstrata da vida, principalmente quando não temos muita clareza sobre esses sonhos.
E é por isso que me identifiquei com esses personagens, o do saunterer e o flaneur, e nas vantagens que eles tiram da "arte de caminhar sem rumo". E isso não significa ser conformista, pouco ambicioso e adepto da filosofia "deixa a vida me levar" do grande Zeca Pagodinho. Mas que não ter total clareza sobre para onde estamos indo, não é motivo para desespero, assim como podemos e precisamos desfrutar e dar mais atenção ao caminho do que ao objetivo, por mais clichê que isso possa parecer.
Não precisamos cair na armadilha do mais, do excesso de positividade e da busca incessante pela alta performance, se não quisermos. Podemos apenas caminhar como um flaneur, observando o entorno enquanto construímos os recursos que necessitamos.
A ideia hoje é apenas estimular a reflexão sobre a forma como estamos conduzindo e sendo conduzidos pela sociedade que assim como há 160 anos, sente que está sobrecarregada e deixando de lado elementos que são vitais para a natureza humana.
O mundo mudou mas grande parte dos nossos dilemas existenciais continuam os mesmos.
Ter o que perseguir, saber com o que se engajar e se sentir útil, tudo isso é necessário para darmos sentido a vida. Hoje ou antigamente, muita gente já se sentiu vazia ou perdida e sem rumo em algum momento.
E tá tudo bem, não precisa se desesperar. Não são planos rígidos e um destino fixo como objetivo de longo prazo que vão resolver.
Muitas vezes, é melhor caminhar por aí sem mapa do que com o mapa errado.
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Esse episódio do Mamilos Podcast é essencial para os momentos em que achamos que estamos perdidos, bem como para os momentos em que nos perdemos acreditando que nos achamos, assim como para outros momentos de dilemas existenciais. É um "tá tudo bem" no meio de tanto caos.
"Você não deveria se sentir pressionado a seguir sua paixão ou a encontrar propósito em seu trabalho". O propósito de muita gente com relação ao trabalho é basicamente e até exclusivamente, apenas conseguir dinheiro para pagar as contas. E será que essa não é a maneira certa de encarar o trabalho? Até acho que não, mas encontrar trabalho significativo não pode sempre ser a prioridade.
Muito pouca gente sabe para onde está indo e idealizar um destino fixo nem faz muito sentido. Os caminhos para minimizar o problema mapa-território e a importância de ser um "flaneur".
A primeira foto de um buraco negro foi assunto dos mais comentados da última semana. No twitter, achei essa bela thread sobre os detalhes, a técnica e a grandeza desse projeto que parece coisa de ficção cientifica.
Como deve ter percebido, o fenômeno GOT voltou para sua última temporada. Fui daqueles que relutou em me deixar levar pelo hype mas não teve jeito. Na primeira oportunidade que dei a série (já lá pela quarta ou quinta temporada), fui fisgado. Essa foi a última boa análise e resumo que li antes da estréia da temporada final. Só pra não passar em branco e pra de repente, fisgar mais um desavisado por aí ;)
Um grande amigo escreveu seu primeiro romance tratando de temas pesados como suicídio e depressão. Apesar disso a leitura é leve e com pitadas de um humor ácido, bem tranquilo de ler. Sou suspeito para falar mas não podia deixar de recomendar até por tratar de assuntos que também remetem a esses nossos tempos de almas sobrecarregadas e vazias ao mesmo tempo. Divulguei o livro lá no instagram, onde você também pode achar o link para apoiar mais esse autor independente.
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Autobiografia de Henry D. Thoreau, Walden é a manifestação dos ideais de um dos maiores críticos da civilização industrial na história. Publicada em 1854, a obra passa por temas não superados até hoje pelo homem contemporâneo, como o direito à liberdade e o respeito à natureza. Apesar de muito detalhista e até chata em alguns momentos, é uma obra que merece fazer parte da sua biblioteca.
Principal obra de Taleb, Antifrágil fala sobre riscos, incertezas e supercompensação, mas fazendo uma jornada que vai muito além desses pensamentos. Traz caminhos que podem nos ajudar na tomada de decisão dominada pelo desconhecido, além de nos mostra que abraçar o acaso e a desordem pode ser mais vantajoso do que remover toda a aleatoriedade do caminho. É daquelas para se ler e reler inúmeras vezes e, definitivamente ter em sua biblioteca.
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#Achado - Documentário: Cosmos - Uma Odisseia no Espaço-tempo
Cosmos: Uma Odisseia do Espaço-Tempo é uma série de documentário científico, continuação da série de 1980, Cosmos, que foi apresentada por Carl Sagan. O apresentador da nova versão, que já não é tão nova assim (2014) é o físico Neil deGrasse Tyson.
Todo capítulo dessa série tem a capacidade de nos deixar naquele estado de "maravilhamento" com a vida. Pelo menos me deixa assim toda vez que assisto, em especial os capítulos 4 - Um céu cheio de fantasmas e 13 - Sem medo do escuro. Se estiver precisando dessa sensação, recomendo toda série, que infelizmente não está mais na Netflix, mas pode ser encontrada pelo Youtube. Vale a pena procurar essa série que reverencia todo universo e conhecimento da espécie humana.
Essa news que já foi semanal e que teoricamente deveria agora, ser quinzenal, tem saído quase que mensalmente. De certo por agora é que nos vemos na próxima, apesar de não saber quando.
Um abraço,
Edgar